Entrevista com a professora Bárbara Carine
- Vamos Conversar? E.9
- 29 de novembro, 2024
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1) Nas suas primeiras publicações, você fala muito sobre a importância de superarmos hegemonias. Qual a função da superação de hegemonias quando a gente pensa em educação, principalmente educação básica?
Bárbara Carine: A gente tem uma sociedade que constrói espaços de poder, que são espaços hegemônicos, a partir de um marcador do sujeito universal, que é tudo aquilo que a gente não observa no âmbito da diversidade. Então, esse sujeito universal, que é um sujeito branco, que é um sujeito homem, que é um sujeito heteronormativo, que é um sujeito centrado numa perspectiva homofóbica, capacitista, etarista, gordofóbica, tem uma estética produzida pela ciência que vai ditar o lugar da hegemonia na sociedade. Isso vai de encontro com o pensar perspectivas educacionais contra-hegemônicas. E não é só dizer que existem outras formas de existir. Existe uma pluriversalidade do ser humano que precisa ser valorizada na escola na dimensão das ciências, seja das naturais, da matemática, das ciências humanas, da filosofia, da literatura, seja de qual área for, mas também há uma hegemonia que a gente precisa romper no sentido de um currículo monocultural. Porque, para garantir esse estatuto do poder, para garantir essa estética do poder, o sujeito universal contou muito com a escola como um aparelho ideológico social. Então, essa sociedade que estabelece padrões hegemônicos educa os educadores, e esses educadores e educadoras reproduzem essas perspectivas no espaço escolar em suas práticas pedagógicas, perpetuando esse entendimento do que vem a ser humano, do que vem a ser a potencialidade humana, de quais pessoas são producentes de saber ou não, de quais pessoas são destinadas a realizar trabalhos intelectuais e quais não. Então, eu acredito que é tanto numa via de romper com esse marcador ontológico do humano branco, em um lugar de unilateral de humanização, mas também em um lugar de romper com epistemologias monoculturais, com narrativas curriculares monoculturais.
2) Esse entendimento dialoga com a superação do que chamamos de “histórias únicas”?
Bárbara Carine: Contra uma história única europeia, uma educação contra-hegemônica vai de encontro às literaturas unicamente brancas no ambiente escolar. Uma educação contra-hegemônica vai de encontro à estereotipação de pessoas negras e indígenas no ambiente escolar. Então, uma educação contra-hegemônica é uma educação de outras possibilidades de existir, que tanto aponta caminho para isso, mas também constrói esse caminhar, constrói essa trilha. Isso não significa que uma educação contra a hegemônica vai jogar na lata do lixo o que vem da Europa, que não se pode mais estudar brancos. Apenas uma educação contra-hegemônica apresenta que a gente não vai ter mais um currículo brancocêntrico. Que a gente não vai ter mais o currículo eurocêntrico e uma escola eurocêntrica. A gente tira a Europa e a branquitude do centro da narrativa humana e epistêmica, e pluriversaliza isso, mostrando que existem outros seres, outros grupos sociais que produziram narrativas acerca de si, acerca da história e, inclusive, narrativas muito anteriores a da branquitude, como, por exemplo, a comunidade negra, que é a gênese humana.
3) E como explicar essa gênese humana presente nas comunidades negras?
Bárbara Carine: As pessoas negras são os primeiros humanos, as primeiras formas de construção societárias, os primeiros impérios. Então, a gente traz aí outra narrativa, muito diferente daquela que coloca o marcador ontológico, o nascimento, o surgimento da pessoa negra a partir da escravidão como um marco fundacional da existência negra.
4) Pensando um pouco na questão da teoria, das teorias que pautam a educação, das teorias que os próprios professores estudam no seu processo formativo, você tem um livro que aborda a pedagogia histórico-crítica. Como a teoria histórico-crítica pode contribuir com essas práticas pedagógicas que, como você falou, auxiliam na pluriversalização das narrativas, ampliando referenciais, superando hegemonias, fortalecendo diferentes identidades?
Bárbara Carine: Bom, a pedagogia histórico-crítica é uma pedagogia que tem uma base no materialismo histórico-dialético, que vai pensar a educação como uma ferramenta de emancipação humana. Então, a sociedade forma a escola. A escola é sim um aparelho ideológico do Estado nesse sentido, mas a sociedade também é transformada pela escola enquanto um complexo social ativo nessa sociedade. A pedagogia histórico-crítica apresenta uma perspectiva de transformação da realidade social pautada no marcador da classe a partir da apropriação de conhecimentos clássicos, que são os conhecimentos escolares.
É uma pedagogia que vai demarcar o lugar da importância do currículo e desses conhecimentos clássicos no currículo. Eu acho que é uma pedagogia importante no sentido de que ela pauta uma escola igualitária para todos e para todas. O oprimido não vai deixar de ser oprimido enquanto ele não dominar aquilo que o opressor domina, que são os conhecimentos. Então é isso que a pedagogia histórico-crítica traz. E, hoje, as críticas que eu tenho em relação à pedagogia histórico-crítica é no entendimento do que vem a ser o clássico. Talvez esse entendimento do clássico dentro da pedagogia histórico-crítica também seja pensado a partir de um marcador branco do que vem a ser o currículo escolar. Nessa leitura de pessoas majoritariamente brancas e sudestinas, que pensam essa teoria a partir de marcadores como Gramsci, como intelectuais outros, que são intelectuais revolucionários, mas que estão no escopo da brancura, dentro desse pacto da branquitude. Por que não pensar conhecimentos africanos, conhecimentos indígenas como clássicos, que devem também estar no lugar da escola, em um lugar dentro da escola, e não apenas como cultura popular, mas como conhecimentos efetivamente escolares que também propiciam o desenvolvimento humano? Eu acho que a pedagogia histórico-crítica tem isso de muito interessante, de dizer que a escola tem uma importância fundamental no processo de emancipação humana, no desenvolvimento humano, em um duplo sentido, tanto no sentido da transmissão de um legado sócio-histórico de uma geração para outra, que não é uma transmissão cognitivista, mas uma transmissão cultural. Uma geração anterior, uma geração que me precedeu, transmitiu esses conhecimentos até mim, de modo que eu não precisei reinventar a roda. E nós não precisamos reinventar a roda a cada nova geração. Há um legado sócio-histórico passado de geração em geração. Isso é muito importante dentro da perspectiva da pedagogia histórico-crítica, mas há também uma lógica de emancipação no sentido pessoal. A escola é um espaço de desenvolvimento humano. Aprendendo conhecimentos escolares, conhecimentos clássicos, eu desenvolvo os instrumentos do pensamento a ponto de me tornar ainda mais humano pelos espaços escolares. Então, a aprendizagem reboca o desenvolvimento. Eu me desenvolvo humanamente, a partir do que aprendi. Eu me torno, inclusive, mais inteligente a partir do que aprendi. Então, eu gosto muito dessa responsabilidade que a Pedagogia Histórica Crítica coloca sobre a escola, nesse lugar de fazer com que pessoas se tornem gente a partir das vivências didáticas e pedagógicas cotidianas.
5) É uma teoria que acaba dialogando muito com o combate ao racismo no nosso cotidiano, na nossa prática, principalmente nas práticas pedagógicas, considerando que a construção da educação brasileira é demarcada também pelo racismo, justamente pelo que você falou, pela visibilidade de alguns corpos e invisibilidade de outros. O racismo invisibiliza corpos, identidades, causando apagamentos e isso acaba afetando a educação. E dentro dessa trajetória sócio-histórica, a gente tem a ciência como uma área que contribuiu muito para essa realidade, para essa invisibilidade, para essa hierarquização humana. De que forma os professores podem quebrar esse paradigma que a ciência ajudou a construir?
Bárbara Carine: A ciência estabeleceu que pessoas negras não eram humanas, justamente nos destituindo daquele marcador fundamental da essência humana, que é a razão. O ser humano é um animal racional. Então, a ciência disse que nós não tínhamos evoluído a condição humana, que nós não tínhamos desenvolvido o pensamento. Inclusive, estudos dentro do âmbito do racismo científico, estudos craniométricos foram desenvolvidos para mostrar similaridades cranianas de pessoas negras com outros primatas, como macacos. Mais proximidade de pessoas negras com o cérebro dos macacos do que com o cérebro de pessoas brancas. E a ciência abriu essa porta do inferno para pessoas negras por três séculos, legitimando escravidão, legitimando experimentos com pessoas negras como cobaias sem uso de anestésicos, legitimando zoológicos humanos, legitimando exposições de pessoas negras como aberrações em mostras científicas, em museus de ciência. A ciência foi muito cruel com pessoas negras e a crueldade dessa ciência segue se perpetuando nos nossos processos atuais de desumanização. Desde 2003, a ciência já entende que não existem raças humanas, mas apenas uma raça. Mas não se responsabilizou por toda a tragédia social que ela propiciou. No imaginário coletivo social, a gente tinha teses científicas que estabeleciam, como as teses do Lombroso, do Nina Rodrigues, do Francisco Galto, do Silvio Romero, que asseguravam que pessoas negras eram geneticamente propensas ao crime, violentas, homens negros com tendência ao estupro. Se construiu no imaginário coletivo social uma imagética negra muito dolorosa perpetuada até os dias de hoje na criminologia social brasileira. Então, o judiciário brasileiro reproduz isso. As tecnologias de reconhecimento facial reproduzem isso. Houve uma migração dessa hierarquia racial posta dentro da ciência, das ciências biomédicas, para uma hierarquia social e racial posta dentro das ciências humanas e dentro do convívio humano, que é o que a gente tem hoje. O que os professores e professoras podem fazer perante esse caos que a gente ainda hoje enfrenta para humanizar pessoas negras? Humanizar pessoas negras significa devolver aquele atributo que a justiça humanizou, que foi a intelectualidade, o pensamento. Então, é muito importante que professores e professoras apresentem conhecimentos negros na escola, conhecimentos africanos na escola, conhecimentos indígenas na escola. Pensando, por exemplo, a ética matemática. Vai pensar a ética desde a África, dos artefatos matemáticos africanos. Vamos pensar a geometria desde os papiros africanos, desde os fractais africanos, pensar a geometria desde as tranças, os tecidos africanos, vai pensar a lógica binária nos jogos de búzios, vai pensar o raciocínio lógico-matemático a partir de jogos Mancala. Tem uma série de possibilidades da gente trabalhar as questões étnico-raciais. Eu tenho acompanhado o município do Rio de Janeiro, porque muitas vezes eu sou marcada (nas redes sociais), e eu fico muito feliz. O pessoal trabalha muito com o meu livro História Preta das Coisas, e fazem muitos trabalhos de socialização, de divulgação da ciência negra. Isso é importantíssimo. Eu vejo que no Rio o pessoal faz muito trabalho também de representatividade. Faz murais com pessoas negras em condições de poder, nas condições, sobretudo, intelectuais de poder. Então, mostra lá uma cientista negra. Quando eu estive na GERER, por exemplo, eu fui visitar uma mostra de cientistas negras que estava circulando nas escolas, em pontos educacionais e de cultura na cidade do Rio de Janeiro. Então, essa representatividade de mostrar, “olha, essa pessoa aqui é cientista”, “essa mulher negra, ela é cientista”. Isso é muito importante. E é importante criar também a naturalidade disso. Vamos mostrar várias. Não vamos transformar isso em algo pontual. Vamos pensar isso em uma perspectiva transversal ao longo do ano para que isso se torne ordinário e o estudante não veja um negro que pensa, como algo extraordinário. Eu penso que é nesse lugar que a gente precisa resgatar a humanidade, a partir daquilo que a nossa humanidade foi destituída, foi defenestrada, foi jogada pela janela.
6) Você falou um pouquinho sobre classe também, que atravessa a questão racial, e a gente sabe que existe uma aglutinação de questões, de atravessamentos, como as questões de gênero, as questões de raça, de classe, elas acabam se aglutinando para estruturar esses apagamentos dos sujeitos na história. Como a educação das relações raciais pode contribuir com a ruptura desse pacto, desse pacto interseccional que acaba fortalecendo as invisibilidades, as exclusões no cotidiano?
Bárbara Carine: Eu penso que a escola tem que ter consciência. Os educadores têm que ter consciência que a gente está em uma sociedade com múltiplas opressões estruturais. Na minha leitura, a opressão mais basilar é a opressão racial, uma vez que você ser negro cria uma condição de demérito ainda mais aprofundada diante de todas as outras esferas de opressão. Então, mulheres sofrem com o patriarcado no ocidente, mas mulheres negras e indígenas sofrem isso ainda mais adensado. Pessoas da comunidade LGBTQIAP+, sofrem com a LGBTQIAP+fobia. Pessoas sofrem com capacitismo. Mas pessoas trans negras ou pessoas negras com deficiência sofrem, inclusive, com uma invisibilidade. É muito recente a gente acessar que existem pessoas negras com deficiências intelectuais, com deficiências diversas, porque nós achávamos que não existia isso, que pessoa negra não tinha Síndrome de Down, não tinha autismo, não tinha outras questões, porque eram muito invisibilizadas. Então, a gente está falando de uma sociedade na qual o ser negro piora todas as coisas, adensa, tem uma intersecção aí nessas esquinas, nessas encruzilhadas da opressão, que coloca o sujeito negro nos porões do inferno. E a escola precisa pensar isso, pensar esse currículo, a partir de um marcador interseccional. Essa representatividade tem que ser construída no âmbito da diversidade. No âmbito da diversidade que a gente vai pensar o Dia da Mulher, o Dia da Luta Internacional pelos Direitos da Mulher, e a gente vai sim levar uma pessoa trans para essa roda, e a gente vai se preocupar em ter mulheres negras, em ter mulheres indígenas, e a gente vai se preocupar em ter uma pessoa com deficiência também ali falando, se preocupar em ter essas representatividades não só físicas na escola, mas também apresentadas de outros modos, por meio de paradidáticos, por meio de literaturas outras.
7) E quais recursos o professor pode utilizar para alcançar essa diversidade na sua prática pedagógica?
Bárbara Carine: Eu acho que a literatura é uma via também de trabalho muito importante. Você trabalhar com livros que apresentem outras formas de parentalidade, outros formatos de família. Você trabalhar com literaturas que apresentem pessoas negras em lugar de positivação, pessoas indígenas em lugar de positivação. Você trabalhar com literaturas que apresentem o quanto que mulheres são propensas a ocuparem espaços de poder igualmente aos homens. Eu acho que isso precisa estar muito evidente na escola. E nessa ótica interseccional, eu costumo, inclusive, ressaltar muito esse lugar de diferenciar, inclusive, o homem, o macho que a gente geralmente fala, do próprio homem negro. O homem negro, por mais que tenha se apropriado de elementos patriarcais e exerce isso na sua vida cotidiana de múltiplas formas, o homem negro não é esse sujeito universal. E o homem negro está, enquanto comunidade negra, como nós (mulheres), no âmbito da desgraça humana também, com problemas muito específicos. Enquanto nós temos uma agenda como mulheres negras, homens negros também têm uma agenda, uma agenda dentro da questão do genocídio, dentro do abandono, na dependência química, na moradia, são os maiores em condição de rua, são os maiores na estatística do suicídio no Brasil. Tem um marcador interseccional que coloca o homem negro também em condição de desgraça. E aí, eu trago isso sempre que eu falo de interseccionalidade para não parecer que a gente não vai pensar também sobre esse menino negro na escola, e que está vivendo essas questões na família, que está tendo lá um tio, um pai alcoólatra, que está vivendo com uma pessoa em depressão. Enfim, uma série de questões que estão postas dentro dessas teias sociais tão complexas que a gente vive na escola. Eu acredito que segue na ótica da representatividade, de uma representatividade interseccional, de uma representatividade que humanize todos os outros sujeitos que não apenas o homem branco, cis, hétero, etc.
8) Então, a base epistemológica precisa ser alterada e a diversidade precisa tomar conta. Qual a importância dos professores na abordagem das questões étnico-raciais no cotidiano, a partir dessa ótica da diversidade, considerando que, muitas vezes eles nem são formados para isso, a sua formação inicial não explora essa perspectiva?
Bárbara Carine: Pois é, a gente fala muito sobre o professor, mas o professor está numa ponta. Ele está numa ponta de um sistema complexo educacional, que não se preocupou com a sua formação na formação inicial, que muitas vezes não se preocupa com a sua formação na perspectiva da formação continuada. E, muitas vezes, a gente coloca a responsabilidade sobre esse professor, mas tem um sistema maior, né, que inviabiliza esse trabalho lá na ponta. Muitas vezes, o professor, ele não consegue trabalhar. Às vezes, ele tem essa consciência, esse letramento racial, mas ele não consegue trabalhar porque ele não sabe como traduzir. Na verdade, transpor para um saber didatizado não é algo trivial. O professor, ele leu Lélia Gonzalez, ele leu, por conta própria, até, Abdias do Nascimento, Luiza Bairros, leu Sueli Carneiro, Silvio Almeida, tem repertório sobre racismo. Mas ele não sabe o que fazer diretamente na sala de aula, porque essa formação direcionada não aconteceu. Então, a gente precisa de uma formação de professoras, tanto em aspectos conceituais, teóricos, mas gerais, para que essa professora reconheça o estado de coisas sociais que a gente vive hoje. E, para além disso, direcione no sentido de o que fazer com esses conhecimentos e como mediá-los. Não vai existir uma receita pronta. Não vai existir uma receita de bolo, uma fórmula, mas a gente já tem repertório de alguns materiais, de alguns livros, de algumas experiências que apontam caminhos para essas formas de atuar. É muito importante que esse professor que está nessa ponta, tenha todo esse suporte do Estado: suporte econômico, o suporte estrutural, o suporte numa dimensão literária. O professor precisa comprar os livros que trabalha na sala de aula. Esses livros estão presentes na biblioteca da escola. É uma dimensão também formativa, a atuação desse professor, eu acho que é pensar e intercalar.
9) Como o professor pode iniciar esse processo de prática contra-hegemônica com crianças pequenas?
Bárbara Carine: Acho que na infância o foco precisa ser muito a positivação das existências. Precisa ser muito mostrar para essas crianças o quanto que a ancestralidade delas é igualmente potente, o quanto que a ancestralidade delas é igualmente desbravadora, composta por reis, rainhas, cientistas, pelos primeiros humanos, por tecnologias, por ciência. É muito importante positivar as existências, subjetividades no tempo presente, a partir desse olhar para o passado. Com as crianças um pouco maiores, pensando aí o ensino fundamental, com os adolescentes, eu acho que é importante intercalar essa perspectiva de positivação, de trazer narrativas potentes, pioneiras, com a narrativa de consciência crítica racial. Então, vai haver momentos, sim, que vai ser importante falar, as crianças identificarem o que é racismo, os jovens identificarem o que é racismo, saberem como atuar em situações de racismo, como elas devem se impor em situações de racismo. E a escola vai precisar ajudar nesse processo formativo. Então, eu costumo pensar que essa situação para as relações étnico-raciais, ela está posta na escola em um lugar, que é esse lugar afro-referenciado de positivação, que na educação infantil eu acho que é o único lugar possível. Não cabe falar de racismo, não cabe falar de dor na infância, na primeira infância. E eu acho que com as crianças maiores, a gente vai desenvolvendo um letramento crítico racial para o entendimento do mundo e de como elas se situam, se localizam e se impõem nesse mundo.
10) Pensando nessa educação macro, qual o lugar de fala dos gestores? Desde aquele que está ali dirigindo uma escola, que está atuando à frente dos profissionais, ou com os profissionais, organizando as dinâmicas cotidianas, até aquele que está nas secretarias de educação, que está pensando nas políticas públicas para a educação das relações étnico-raciais. Qual é o lugar de fala desses profissionais?
Bárbara Carine: Acho que o lugar do gestor, da gestora, é o lugar da viabilização das práticas. Tem professores que estão atuando nessa ponta e esses gestores, sejam os gestores nas unidades escolares, sejam os gestores que estão nas secretarias, nas SMEs, nas secretarias municipais, estaduais de educação, esses gestores precisam pensar os mecanismos de que essa literatura chegue, de que essa formação aconteça, de que essa escola tenha condições estruturais para o seu desenvolvimento, de que esse estudante tenha condições objetivas de se manter nessa escola. Como está a merenda? Como está essa organização objetiva no sentido da permanência desse estudante? Como está esse acolhimento familiar? Quais são as estratégias pensadas em termos de diálogo com a família por parte da unidade escolar? E, muitas vezes, essa família que veta práticas antirracistas, que vem de uma ordem religiosa que se baseia em um fundamentalismo religioso, que vai associar todo tipo de prática étnico-racial à religião de matriz africana. Como instrumentalizar essa família? Como convencer essa família de que não é necessariamente sobre isso? De que é possível, sim, falar de mitologia nigeriana, de mitologia iorubá, de mitologia africana na totalidade na escola como se fala de mitologia grega? É possível, sim. Mas que talvez esse não seja o momento, por exemplo, em que a gente esteja apenas falando de literatura negra. Que a gente esteja apenas falando de étnico-matemática. Que a gente esteja apenas falando de ciência e tecnologia africana e afrodiaspórica, coisas que não tem nenhuma, não agencia o orixá em nenhuma medida. Então, essa gestão precisa estar nesse aparente bastidor, mas que não é um bastidor, mas, aparentemente, nesse bastidor que viabiliza esse show pedagógico na sala de aula para que ele aconteça, que esse espetáculo na sala de aula aconteça. Eu acredito que a gestão está muito nesse lugar de produção, um lugar de produção que tem as suas próprias garantias dentro do âmbito das normativas postas pela unidade, pelo município, de estar resguardada com essas normativas, porque muitas vezes existem conflitos entre professores e professoras e o corpo gestor da unidade escolar, ou da Secretaria Municipal da Educação, no sentido de que acham que as cobranças são excessivas. Não, as cobranças não são excessivas. As cobranças estão postas regimentalmente e foram acordadas. Houve uma assinatura de um documento no ato da sua posse, que você sabia que tinha que entregar tais documentações, que, periodicamente, tinha que fazer tais coisas. E a gente está aqui não apenas em um lugar normativo de cobrança. A gente está aqui em um lugar coletivo de estabelecimento de prazos, de limites, mas que esses documentos são fundamentais para o acontecimento desse espaço. É um lugar de uma mão dupla, tanto uma mão de viabilização de processos, quanto uma mão de uma hierarquia nesse lugar de viabilizar por um processo de, não digo nem de cobrança, mas um processo de estabelecimento de acordos, de combinados com esses professores e professoras acerca da própria natureza do seu trabalho, acerca das suas próprias atribuições em comum acordo estabelecidas com o Estado.
11) E pensar que as questões étnico-raciais precisam ser tratadas na escola para atender demandas sociais, demandas de relações sociais que afetam tanto as pessoas brancas como as não-brancas. Qual o peso do pertencimento identitário dos profissionais na atuação em torno de uma educação antirracista? A educação antirracista é dever de apenas um grupo identitário ou é de todos?
Bárbara Carine: A educação, em sua própria condição ontológica, já deveria ser antirracista. A gente não precisaria adjetivar educação antirracista, educação anticapacitista. A educação em sua própria natureza é um exercício do formato do educar no sentido do desenvolvimento humano, no sentido da continuidade da história humana, a partir de uma pluriversalidade cultural, a partir de um repertório que é muito abrangente, que é muito múltiplo. Então, a gente está falando de uma educação que deveria necessariamente ser antirracista. Só existe a educação antirracista porque a educação em si não cumpre o seu papel. E, nesse sentido, todo educador e toda educadora precisa educar para esse processo de emancipação humana, para esse reconhecimento da diversidade, para essa celebração da diversidade, independentemente de quem seja. Não é porque nós somos mulheres cis que a gente não vai se preocupar com o fato de que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Isso precisa estar presente na escola, isso precisa estar presente para a viabilização dessa existência trans dentro da escola. A escola não pode ser um não lugar para pessoas trans. Um lugar que a pessoa não tem o direito de ser chamada como ela gosta, que não tem o direito de se vestir como ela se sente confortável, que a pessoa não tem o direito sequer de fazer um xixi. Então, a escola precisa ser um espaço para todas as pessoas. E isso é a responsabilidade de todo e qualquer educador, independentemente de ser negro, de ser indígena, de ser branco, seja o que for. É só cada um falar a partir do seu lugar de fala, entendendo que lugar de fala todo mundo tem. O lugar de fala é como o fenômeno, ele atravessa uma pessoa branca, rica, atravessada pelo fenômeno da racialidade. Como que ela é atravessada pelo fenômeno da racialidade? Ela é atravessada pelo fato de só ver pessoas brancas a vida toda nos ciclos sociais dela. Ela é atravessada pelo fato de todas as pessoas que trabalham na sua residência, a vida toda, serem pessoas negras. É atravessada pelo fato de observar que ela sempre foi servida por pessoas negras, enquanto ela olhava para os lados, fazia um teste de pescoço e via pessoas brancas como ela sendo servidas. Ela é atravessada pelo fato de nunca ter acessado uma cultura negra em um lugar de positivação. Ela é atravessada por inúmeras questões do seu lugar de procura, e que ela pode trazer isso para uma sala de aula. Então, eu acredito muito em um antirracismo coletivo, em uma educação antirracista que seja abraçada pela coletividade de educadores e educadoras, nesse lugar de cada vez mais construir um espaço educacional para além de igualitário, um espaço educacional equânime.
12) Você falando sobre tudo isso, abre para outra perspectiva de educação, que dialoga muito com o que a gente chama de perspectiva decolonial. Explique esse conceito de educação decolonial, atrelado ao modelo educativo antirracista?
Bárbara Carine: O colonialismo esteve atrelado à ciência na modernidade europeia em um lugar de desumanização de pessoas negras, de pessoas indígenas, para a automanutenção do branco na centralidade enquanto sujeito universal e, portanto, na condição de colonizador, na condição de desbravador, na condição daquele que produz a narrativa de uma história única. A gente tem aí o colonialismo como um modelo sócio-político-econômico vigente no Brasil até 1823, porque na minha leitura isso acontece até a independência do Brasil na Bahia, no 2 de julho de 1823. Mas, ao mesmo tempo, a gente vai ter uma colonialidade que se perpetua até os nossos dias. Enquanto o colonialismo é um sistema sócio-político-econômico que existiu no nosso país e que hoje não existe mais, ele deu lugar à colonialidade, que é aquilo que a gente chama comumente de síndrome de vira-lata. É a hierarquização de pessoas a partir do rebaixamento de subjetivos. Então, o norte do mundo se estabeleceu central. A religião do norte do mundo, a estética do norte do mundo, a cultura do norte do mundo, a geopolítica do Norte, deu espaço para uma perspectiva de existência colonialista, que estabelece que o branco está em um lugar de centralidade e, tudo o que não é branco nesse outro lugar de demérito, nesse lugar, no caso específico de pessoas negras, de um outro que, na realidade, nem grau de paridade tem, porque nos colocaram em uma condição de desumanização, de animais. Nem o outro nos era possível. Nos exterminaram da possibilidade, inclusive, de ser outro, de ser o diverso do homem branco, do sujeito branco. Nem na condição de paridade humana a gente foi posto. Então, eu acredito em uma educação decolonial, que enfrenta os colonialismos contemporâneos que a gente vivencia na atualidade, principalmente no currículo escolar, com uma história única, com um modelo geográfico mundial que centraliza a Europa em detrimento aos outros territórios do mundo, com uma ciência unicamente europeia, com uma filosofia unicamente europeia, com uma literatura unicamente europeia, com uma narrativa historiográfica que coloca a Europa no centro a partir da alteração dos seus modos de produção, que coloca essa história como uma história geral, que é a história que a gente acessa na escola, mas que não é uma história geral, que é uma história de uma parcela diminuta dos humanos. Eu acredito que essa educação precisa destruir as armadilhas colocadas para que a gente se sinta sempre inferior, para que a gente seja colocado sempre nesse lugar de que nos falta algo para chegar à condição de ser gente.
Essa educação decolonial precisa exterminar o eurocentrismo. E eu repito, exterminar o eurocentrismo não significa jogar na lata do lixo tudo aquilo que a Europa fez. Significa dar a César o que é de César. Houve muita pilhagem epistêmica dos conhecimentos europeus, muita coisa que foi sequestrada dos conhecimentos indígenas, dos conhecimentos africanos, muitos conhecimentos roubados, muitos conhecimentos objetivos e subjetivos roubados, riquezas materiais e imateriais foram saqueadas. A gente está falando de um processo de reconquista dessas produções, e de reconquista também no senso de humanidade, de dignidade pela via da escola.
13) Que recado você pode deixar para os nossos professores, para que eles se reconheçam e se tornem agentes dinamizadores de práticas pedagógicas antirracistas, reconhecendo a importância e o papel deles nessa construção?
Bárbara Carine: Professores estão em lugares extremamente estratégicos da sociedade. Eu não costumo dizer que é responsabilidade sozinha da escola transformar a realidade social. A mídia precisa se empenhar nisso. É muito difícil a gente fazer um trabalho antirracista na escola com uma televisão racista. É muito difícil a gente fazer um trabalho antirracista na escola com uma política institucional racista que, inclusive, por meio de emendas, por meio de leis, inviabiliza os nossos trabalhos no ambiente escolar. É muito difícil a gente fazer um trabalho antirracista na escola com uma cultura racista, enfim, com todos os complexos sociais sendo racistas. Então, a escola, por si só, ela não consegue ser heroica a ponto de transformar a sociedade sozinha. Mas, sem ela, muito menos a sociedade poderá se transformar. Porque a escola é um complexo social extremamente estratégico. Não só porque a gente trabalha no atacado, né? E, enquanto outras áreas de atuação profissional lidam ali com uma pessoa por hora, sei lá… psicóloga, pessoal da área de saúde, pessoas de diversas áreas do trabalho. Na educação, a gente, numa manhã, lida com 400 jovens, né? A gente tem uma potencialidade de diálogos em massa muito grande em nossas mãos, né? Sem contar que essas pessoas vão atuar nos outros complexos sociais. É da nossa sala de aula que vai sair a pessoa que vai atuar na mídia televisiva, que vai atuar na cena cultural da cidade, que vai atuar na saúde, que vai atuar nas artes, que vai voltar para atuar também como educador, como educadora, que vai atuar em todos os complexos sociais. Então, a gente está em um espaço extremamente estratégico do ponto de vista revolucionário e emancipatório, que a gente não perca de vista isso. Que a gente não perca de vista a importância desse trabalho, nesse sentido da transformação social. Que a gente não perca de vista que é muito importante a gente olhar para a nossa atuação enquanto educador, enquanto educadora e ter esse sonho. Todo educador educa para um sonho. Um educador educa para um modelo de sociabilidade que ele almeja, que ele sonha. E, a gente sabe que, infelizmente, na nossa sociedade, educadores não são tão bem remunerados assim. Ele poderia fazer um curso técnico, ele poderia fazer alguma coisa que vá viabilizar o acesso a esses recursos financeiros de outra forma. Porque a gente tem a possibilidade de escolher estar ou não no ambiente escolar. Há uma obrigatoriedade legal a partir dos 4 anos da necessidade de que a criança esteja. Então, obrigatoriamente, aquelas crianças estão ali diariamente para acessar os conhecimentos que socializamos. Que o façamos do melhor modo possível, para que a gente oportunize não só outros futuros para essas crianças, mas, no tempo presente, uma educação mais afetiva, mais amorosa e, consequentemente, transformadora.
14) O seu último livro lançado é um diálogo com os estudantes negros a partir da sua trajetória de vida, a partir das suas experiências enquanto estudante, até chegar à fase adulta. Que recado você deixaria para os nossos estudantes, principalmente os estudantes não brancos?
Bárbara Carine: O que eu digo para os estudantes é que as dores deles, os estudantes negros, os estudantes indígenas, os estudantes não brancos e as pessoas brancas também passam por dificuldades. Mas não passam por dificuldades nesse marcador da racialidade. E como a gente tá falando disso aqui, é por isso que eu vou focar nos estudantes que não são pessoas brancas. Que eles saibam que as histórias de vida são cruzadas e que não são eles sozinhos que passam por essas experiências de dor. Que outras pessoas vivenciam isso, porque muitas vezes esses estudantes se culpam por isso. “Ah, acho que eu sou muito burro”, “Ah, eu acho que eu não mereço estar aqui.”. “Ah, eu acho que eu sofro assim na escola, porque tem algum problema comigo.” Não, não tem problema nenhum com você. O racismo é uma psicopatologia social. Então, existe um problema social que vai reverberar em pessoas negras, inclusive nesse espaço escolar, que é um espaço tão historicamente racista. Racista pelas suas epistemes, racista pelo seu currículo, racista pelas suas hierarquias profissionais, racista pela sua estética, racista pela ausência de formação de professores e professoras, de educadores e educadoras. Nesse sentido, racista pela ausência de percepção étnico-racial no acesso e na disponibilização de literaturas. Então, a gente está falando de um espaço que nos nega o direito de estar ali, que se torna um não lugar para nós. Então, que esses estudantes tenham consciência que não é uma luta solitária. Tenham consciência da importância da coletividade. Existem pessoas negras conscientes na escola que você está, existem pessoas brancas aliadas. E você, quando você se sentir ofendido, quando você se sentir triste por alguma violência sofrida, seja ela verbal, psicológica, física, que você procure essa rede de apoio, né? Se você não se sente ainda confortável, se você não entende bem que aquilo foi racismo pra você denunciar, procure uma rede de apoio pra narrar o seu desconforto. Porque essa pessoa, muitas vezes, vai te ajudar, vai te conduzir a entender que aquilo que você viveu foi racismo, e que você tenha consciência de que os seus ancestrais foram imensos. Muitas vezes vão tentar colocar na sua cabeça que a sua ancestralidade é uma ancestralidade escrava. Você descende de reis e rainhas, você descende dos primeiros humanos, você descende dos primeiros cientistas, dos primeiros filósofos, das pessoas que criaram os espaços educacionais, escolares, universitários. Você descende de grandes civilizações. Por esse processo racista à brasileira, a escola omitiu isso da gente, por muito tempo. Mas hoje a gente está conseguindo, coletivamente, desvelar essa realidade e apontar outra narrativa sobre de onde viemos. Então, acesse essa narrativa, busque essa narrativa, aponte para sua escola a importância de trazer outras personalidades, que não aquelas corriqueiras brancas, que apenas reforçam o lugar humanitário de jovens brancos.

Bárbara Carine Soares Pinheiro
Bárbara Carine Soares Pinheiro é mãe, mulher negra cis, nordestina, professora, escritora, empresária, palestrante, influenciadora na página @uma_intelectual_diferentona, formada em Química e em Filosofia pela UFBA, além de mestra e doutora em Ensino de Química pela UFBA/UEFS. Realizou estágio de pós-doutorado na Cátedra de Educação Básica – IEA/USP. Atualmente, é professora adjunta do Instituto de Química da UFBA. É autora de livros como @descolonizando_saberes: mulheres negras na ciência e História preta das coisas: 50 invenções científico-tecnológicas de pessoas negras (ambos finalistas do prêmio Jabuti). Idealizadora, sócia e consultora pedagógica da Escola Maria Felipa, primeira escola afro-brasileira do país. É autora do best-seller Como ser um educador antirracista.