Autoras: Rachel Nascimento e Geisi dos Santos Nicolau
O presente trabalho trata-se de um estudo de caso das ações desenvolvidas pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME/RJ), partindo da perspectiva da Educação das Relações Étnico-Raciais. O estudo buscou compreender quais ações principais a SME/RJ, por meio da Gerência de Educação de Jovens e Adultos, tem avançado no sentido da garantia da efetivação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) no que tange ao Ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena, no sentido da Participação Cidadã, foco central das Orientações Curriculares da EJA (2023).
Palavras-Chave: Educação de Jovens e Adultos. Educação das Relações Étnico-raciais. Política-pública. Participação cidadã.
Introdução: Início, meio e início
Para que a Educação Pública seja efetivamente democrática e de qualidade, socialmente referenciada como preconiza nossa LDB Nº 9.394/96, é necessário promover estratégias para reparação e superação das desigualdades sociais, em diversas frentes que figuram entre as causas pelas quais as(os) estudantes são evadidos da escola.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Educação 2019, entre os principais motivos para a evasão escolar, foram apontados a necessidade de trabalhar (39,1%) e a falta de interesse (29,2%). Dois questionamentos que se relacionam estritamente com a Educação para as Relações Étnico-raciais e nos tocam profundamente são: qual o perfil racial majoritário da população que historicamente tem sido impelida a deixar os bancos escolares para prover o sustento familiar? Qual perfil populacional historicamente no Brasil que não tem a escola conectada com suas perspectivas socioculturais? Ainda segundo a PNAD 2019, “das 50 milhões de pessoas de 14 a 29 anos do país, 20,2% (ou 10,1 milhões) não completaram alguma das etapas da educação básica, seja por terem abandonado a escola, seja por nunca a terem frequentado. Desse total, 71,7% eram pretos ou pardos” (Pnad Educação 2019).
Segundo o parecer CNE/CEB N.º 11/2000, popularmente reconhecido por parecer Cury em função de seu relator, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos, o perfil das(dos) estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA) é, em linhas gerais, de grupos sociais historicamente vulnerabilizados, pertencentes à classe trabalhadora. Tal perfil, em sua diversidade cultural, territorial, de múltiplas experiências, deve se constituir como princípio de organização do projeto pedagógico das instituições educativas, com a premissa de buscar, nas bases da Educação Popular, meios pedagógicos de compreensão e superação desses problemas.
Segundo Miguel Arroyo (2015, p.15), “No contexto brasileiro contemporâneo, a luta por justiça educacional está vinculada à luta e à denúncia da segregação social e racial”. Portanto, a EJA se constitui como política de ação afirmativa “criada com o objetivo de promover a reparação e a superação das desigualdades sociais que estruturam a nossa sociedade” (Universidade Federal de Minas Gerais, 2021), na medida que exerce suas três funções, que são: reparadora, equalizadora e qualificadora.
Reparadora – do direito ao acesso à educação aos sujeitos e a necessidade de igualdade de oportunidades entre os seres humanos.
Equalizadora – da redistribuição do bem social da educação, negado pelas estruturas sociais excludentes.
Qualificadora – que, para além de função, traduz próprio sentido da EJA, pois trata da educação permanente, como processo sempre em inacabamento, exercido dentro e fora da escola, ao longo de toda a vida.
A Educação de Jovens e Adultos, modalidade da educação básica, ofertada pela nossa Secretaria Municipal de Educação, promove oferta especializada ao público que é de direito, conforme a Resolução SME nº 455, com chamada pública e matrículas abertas durante o ano inteiro, possuindo um perfil marcadamente negro e feminino.
Entendemos que Educação das Relações Étnico-Raciais, para além de uma temática, configura-se como mudança de perspectiva sobre nossas formas de conhecer e conceber o mundo a partir da premissa de que são plurais, diversas e nos permitem ampliar, como diria Ailton Krenak (2020) “Ideias para adiar o fim do mundo”. Possibilitando, através dos ensinos de histórias e culturas africanas, afro-brasileiras, indígenas a perspectiva de ampliar a justiça curricular na medida que evidencia as narrativas de potência e a agência desses povos em seus territórios e para além deles, permitindo-lhes autoestima, conexão e valorização escolar, mas também ampliando os olhares de toda a sociedade para vivências mais inclusivas e plurais, afinal, como diria Nilma Lino Gomes, o racismo é um fenômeno que deseduca a todos (Gomes, 2017) de diferentes formas e com diferentes prejuízos a formação ética, política, histórica e sociocultural dos sujeitos.
Por isso mesmo, nas Orientações Curriculares da EJA Rio (2023), constituímos uma prática de construção curricular com participação das(dos) docentes, dos diferentes territórios de todas as 11 Coordenadorias Regionais de Educação do Rio de Janeiro. Esse documento apresenta a diversidade dos territórios da cidade, tendo como princípio a participação cidadã, alinhando os componentes curriculares de forma interdisciplinar através dos eixos: cultura, trabalho, ambiente e saúde. Dessa forma, buscando romper com a lógica de hierarquização dos saberes, propondo uma horizontalização dos saberes, inclusive aqueles voltados para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Como podemos destacar, por exemplo, no seguinte objetivo de aprendizagem das áreas de História/Geografia: “Analisar possíveis causas das desigualdades sociais, do racismo estrutural, do racismo ambiental, a partir do modelo de domínio e ocupação do território brasileiro (colonização), seus efeitos nas sociedades atuais e possíveis soluções.” (Ibid., 2023, p. 43)
Garantindo a coerência pedagógica, no Material Rioeduca da EJA, construído por professoras e professores da nossa rede, partimos de diferentes territórios da cidade, dos movimentos sociais por direitos, especialmente os movimentos negro e indígena, de temas urgentes e caros à classe trabalhadora, contada por diferentes atores sociais, especialmente negros e indígenas que diversificam e pluralizam cada vez mais nossos materiais, partindo da realidade dos sujeitos e ampliando-a. Nossos grandes aliados são as Agendas GERER, os Guias paras as Relações Étnico-raciais e os demais materiais produzidos pela GERER (Gerência de Relações Étnico Raciais[1]), e as orientações contidas nas normativas legais, especialmente nossa LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, alterada pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08 que acrescem o Ensino de História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena e a Educação das Relações Étnico-Raciais como bases indispensáveis para constituir espaços educativos de qualidade para todos e todas.
Em 2023, o XVII Encontro de Alunos e Alunas da EJA Rio, encontro regional, de protagonismo de estudantes, que tem como foco apresentar seus trabalhos desenvolvidos junto aos docentes sobre pautas relacionados à EJA, contou com o Tema: Identidade e Representatividade: Potências indígenas e negras na EJA. Esse movimento possibilitou às escolas que ofertam a EJA, por meio do protagonismo das(dos) estudantes, se debruçarem sobre o tema, através da potência desses sujeitos, questionando a “história única” (Adichie, 2019) de falta e passividade.
Neste ano de 2024, o XVIII Encontro teve o Tema “Democracia e Cidadania desde a escola: Projetos de Vida e Participação Cidadã na EJA Rio”, convocou os estudantes a refletirem e planejarem seus percursos de vida, considerando seus sonhos e interesses conectados às demandas do território em que estão inseridos, pois, em uma sociedade estruturalmente desigual, é imperativo e ético a constituição de estratégias coletivas de mudanças na escola ou na comunidade escolar.
Na oferta de formação Interdisciplinar em EJA para Professoras(es) regentes e Professores e Professoras Orientadoras, desde o ano de 2023, realizamos ciclos de formação continuada que contribuem com a meta institucional de qualificar todas e todos os profissionais da educação em exercício, através de formação adaptada a cada perfil e a cada função. Nossa formação conta com a atualização e a ampliação de conhecimentos legais, teórico-práticos sobre os fundamentos da EJA, articulada às Orientações Curriculares, Material Rioeduca da EJA, videoaulas e o programa Um Rio de possibilidades, videoaulas que dinâmicas, gravadas em diversos equipamentos da cidade do Rio de Janeiro, à exemplo da Feira de São Cristóvão, também conhecida como Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Todos voltados especificamente para a modalidade, entrelaçados com a perspectiva da educação para as relações étnico-raciais.
Tendo seus conteúdos personalizados aos territórios, nos valemos das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Brasil, 2013) e seu parecer, objetivando assegurar o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, apontamos elementos estruturantes no trato pedagógico, conforme a legislação citada:
- Consciência política e histórica da diversidade – das diferentes contribuições dos povos, especialmente negros e indígenas, que formaram intelectual, política e culturalmente o país, que são direitos de aprendizagem de todos e todas para construir uma sociedade mais justa.
- Fortalecimento de identidades e de direitos – através da positividade das diversidades étnico-raciais da realidade brasileira e mais especificamente carioca, da discussão de direitos apresentados pelos respectivos movimentos negros, indígenas, quilombolas, etc. que pautaram a construção dessa política.
- Ações educativas de combate ao racismo e a discriminações – a partir da positivação das identidades dos povos historicamente discriminados, da discussão de pautas atreladas aos eixos cultura (em sua diversidade de povos entendendo como manifestação de sua intelectualidade e modos de conceber o mundo), trabalho (na perspectiva de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras), ambiente e saúde (acesso à saúde, incluindo racismo ambiental e justiça climática).
Concluindo… Considerações finais
Por compreendermos que o racismo é estrutural em nossa sociedade, a Educação das Relações Étnico-Raciais torna-se imprescindível elemento orientador da política pública de EJA em nosso município. Buscando promover justiça curricular para que todos os sujeitos, de diferentes pertencimentos identitários, ampliem solidária e criticamente sua forma de ser e estar, mas principalmente, transformar o mundo, como diria Paulo Freire. Nesse sentido, é fundamental que todos os sujeitos envolvidos nesse processo, em qualquer esfera de atuação, considerem a ERER como uma perspectiva que amplia a compreensão dos sujeitos aos quais essa política pública se destina, ao mesmo tempo que compreende, resgata e valoriza suas contribuições historicamente silenciadas, qualificando o conhecimento escolar e compartilhando formas mais confluentes (Santos, 2023), justas, e plurais de ser e estar no mundo.
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[1] A Gerência de Relações Étnico-raciais é um órgão da consultivo, mediador e de planejamento estratégico da SME/RJ que incide sobre os eixos currículo, formação e projetos intersetoriais.

Rachel Nascimento
Educadora Popular, Professora de Ensino Fundamental da SME-RJ, integrou a equipe da Gerência de Relações Étnico-raciais (GERER) e atualmente é professora formadora da Gerência de Educação de Jovens e Adultos (GEJA). É pedagoga (UFRJ), especialista e mestra em Relações Étnico-raciais e Educação (PPRER/CEFET). Atua na E/SUBE/Gerência de Educação de Jovens e Adultos.

Geisi dos Santos Nicolau
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ, Especialista em Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos e, atualmente, é Diretora da Escola de Formação Paulo Freire (EPF).
Referências
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