Figura 1 – Carta para Carolina Maria de Jesus, aluna do 4º ano. Fonte: acervo pessoal da autora, 2023
“Carolina, você mostrou que nada é impossível. E lembrou ao país que negros e mulheres também podem! Você lutou contra o racismo com unhas e dentes e eu vou continuar esta luta.”
Início o relato de experiência com a escrita-vozeada de uma carta remetida à inspiradora intelectual e escritora Carolina Maria de Jesus, feita por uma menina negra, de 10 anos, no envolvimento do projeto “Enegrecendo o Brasil: Mulheres incríveis na História” realizado no segundo semestre de 2023, no (atual) GET Isabel Mendes, com uma turma de 4º ano.
A escrita da aluna nos conduz à intenção da partilha, que se articula em teoria e prática para a construção de um projeto emancipatório de educação, baseado na Educação para as Relações Étnico-Raciais. Nos interessa destacar, que o posicionamento das crianças, nas suas variadas maneiras de apresentação, assim como suas diversas presenças, são o objetivo do nosso trabalho pedagógico-político e político-pedagógico (Freire, 2020). É com a intencionalidade de trazer para o centro, as construções e reconstruções feitas pelas/com as crianças, que conduzimos um projeto pedagógico que prima pela decolonialidade e pelo antirracismo, apresentando em sala de aula histórias outras, propulsoras de desconstruções de imaginários e práticas discriminatórias e desumanizantes.
Nos conduzimos pela decolonialidade compreendendo as tessituras pedagógicas como possibilidade de ruptura com a lógica colonial, que é fundamentada no racismo. Lógica esta que se mantém apesar de encerrado o período de colonização nas américas, através da subjetivação de corpos e mentes, da organização racial e econômica do trabalho, da hierarquia cultural perpetuada pelas instituições, tais como a escola com currículos eurocêntricos.
É abrindo brechas no currículo, tal qual vamos relatar na atividade, que inserimos o potencial decolonial na educação compreendendo que “o decolonial não vem de cima, mas de baixo, das margens e das fronteiras, das pessoas, das comunidades, dos movimentos, dos coletivos que desafiam, interrompem e transgridem as matrizes do poder colonial em suas práticas de ser, atuação, existência, criação e pensamento.” (Walsh, 2016, p.72). Caminhamos junto a percepção das crianças sobre privilégios e desigualdades, sobre discriminações raciais e preconceitos, sobre potenciais presenças na contrapartida das ausências para combater cotidianamente o racismo. É na troca dialógica amparada pelas experiências raciais vividas por elas, que posicionamos a educação antirracista, desde a posturas no espaço escolar para equidade racial quanto nas escolhas epistêmicas nos arranjos curriculares, consolidando uma prática que está para além de reconhecer a existência do racismo, mas principalmente em mover-se contra suas amarras.
Pensando em uma dinâmica de possibilidades para uma Educação que ajude na construção de uma sociedade menos violenta, mais equânime e mais justa, passamos a articular as abordagens sobre a tensão das relações étnico-raciais presentes na sociedade brasileira, através das histórias de vida das crianças, e de suas comunidades, majoritariamente negras. Portanto, os que sentem diretamente os efeitos das hierarquizações de raça, gênero e classe, entre outros marcadores que interditam uma vida digna e livre de opressões.
Não apontamos o racismo, que ‘machuca as pessoas por dentro’ (aluno da turma, 9 anos) como condutor de nossas experiências educativas, mas destacamos suas tramas para desmontar a meritocracia, que tem suas bases no mito da democracia racial, e tensionamos seus efeitos abrindo brechas para (re)construir identidades potentes a partir de outros referenciais.
As brechas no currículo foram alargadas pela construção do projeto destacado, conduzido pela política do amor e da afetividade, o que subverte a ordem das interdições causadas pelo silenciamento epistêmico. Tomamos como rota, o encantamento das crianças a partir das narrativas e trajetórias históricas de mulheres negras na História do Brasil, que aparecem como referencial para subjetivações positivas, desarticulando o referencial eurocêntrico. Procuramos desembaçar o espelho da colonialidade, para que as crianças possam se ver com todo seu potencial.
A Escrevivência (Duarte; Nunes, 2020) é a nossa aposta didática para interculturalizar saberes, desde as articulações com as orientações curriculares previstas e as histórias/trajetórias das crianças, de forma horizontalizada. O ato de escreviver em sala de aula, requer trazer à tona a gênese do conceito fundamentado por Conceição Evaristo, que está para além da justaposição das palavras escrever e viver. A Escrevivência como rota metodológica do processo pedagógico é permeada pelas experiências coletivas de corpos negros, das vozes das mulheres, que desde as amarras da escravização, se deslocam e constroem sentidos que não transmite uma história de si, mas de um coletivo, que lança rasteiras no projeto de nos aniquilar.
Utilizar a Escrevivência como aparato didático-metodológico é provocar a inscrição pela presença, rasgando a máscara do silenciamento, anunciando outros sentidos de elaboração do currículo. Nos é ofertada uma lente negra e feminina para a percepção da realidade e das presenças no mundo. Uma lente que contrapõe a lógica de dominação e competição do mundo branco e patriarcal, e nos conduz ao cuidado, à coletividade, à sensibilidade, à sabedoria e à força, em uma reedição de sociedade comunitária.
Desta forma, assim como a Educação para Relações Étnico-Raciais, conduzir o trabalho pedagógico a partir da Escrevivência é sustentar os arranjos educativos fundamentados em uma episteme negra, que emerge para reeducar negros e não-negros para uma relação étnico-racial pautada na dissolução dos privilégios da branquitude[1] e na implosão de ideologias e práticas racistas. Para crianças negras, a valorização de sua descendência e estratégias para o rompimento dos “lugares sociais” (Gonzalez, 2020) a elas impostos e, para as crianças não negras o reconhecimento do engajamento na luta antirracista, compreendendo o lugar de privilégio que o racismo sustenta.
No cotidiano da escola, se apresentam diversas representações de comportamento, e atuação no tempo e espaço sobre reflexos sociais, culturais, estéticos e cognitivos. O compreendemos como espaço privilegiado de atuação onde
[…] há outras camadas da realidade, não cristalizadas, onde os acontecimentos estão sempre em devir, em transformação, e em relação às quais a lógica das oposições exclusivas é insuficiente. “De olho” no cotidiano, começamos a ser sensíveis, a nos deixar penetrar por essas outras “camadas” da realidade. (Trindade, 1994, p. 49)
Nestas diferentes camadas de realidades, impulsionamos indagações que possibilitam as trocas dialógicas fundamentais à nossa prática. E foi uma questão instigadora que nos levou ao projeto que apresentamos aqui. Seu ponto de partida foi o livro “Alafiá, a princesa guerreira”, de Sinara Rubia (presente no projeto ‘Rio de leitores’). A história conta sobre uma princesa do reino africano de Daomé, sequestrada e trazida como escravizada para o Brasil. Inspirada pela contemplação do mar que remontava sua condição de liberdade em África, ela foge da condição de escravizada e torna-se uma guerreira quilombola.
Evaristo (Instituto de Arte Tear, 2021) nos ensina que é preciso criar novas narrativas para se pensar novas realidades, e a literatura negro-brasileira e indígena nos possibilita o deslocamento da representação monocultural e do eurocentrismo. Portanto, a partir das emoções estimuladas pela leitura, e na conexão entre a ficção da literatura e a leitura da realidade, nos perguntamos “Quantas Alafiás existem na nossa história?”, e fomos atrás de conhecê-las. Foram selecionadas, então, onze mulheres negras, africanas e afro-brasileiras, para apresentar à turma e responder ao nosso questionamento. Na Agontimé, Aqualtune, Tereza de Benguela, Dandara, Luíza Mahin, Maria Felipa, Mariana Crioula, Tia Ciata, Carolina Maria de Jesus, Dona Ivone Lara e Conceição Evaristo, foram as presenças que inundaram de estratégia, inventividade e inteligência as nossas aulas e fundamentaram o projeto “Enegrecendo o Brasil: Mulheres incríveis na História.”
Figura 2 – Ficha biográfica das Mulheres Incríveis e ficha de autopreenchimento. Fonte: acervo pessoal (2023).
Protagonismo e construção de recursos didáticos antirracista com crianças
Uma das dificuldades que encontramos para a aplicabilidade das leis educacionais antirracistas é o acesso a materiais que contemplem as diferenças, e que visibilizem as trajetórias e contribuições de negros, indígenas e demais grupos silenciados pelo referencial eurocêntrico. Portanto, o projeto se inicia com a construção de um material pedagógico na forma de fichas biográficas (figura 2), construídas a partir do livro da cordelista e poeta Jarid Arraes: “Heroínas negras em 15 cordéis”. Este material, pensando no envolvimento das crianças, foi estruturado em um pequeno texto biográfico, a imagem da mulher que estava sendo apresentada, um caça-palavras e uma palavra-cruzada que estimularam a turma a desvendar a trajetória das possíveis Alafiás, em nossa história real, de forma lúdica e instigante. Junto às fichas biográficas, fomos também buscando complementar nossa investigação com vídeos no YouTube que, ao longo do projeto, já eram indicados pelas/pelos próprios estudantes.
À medida que fomos enegrecendo o nosso fazer-sendo com intervenção do material proposto, as crianças foram identificando as estratégias de sobrevivência, a coragem nos enfrentamentos, a indignação como força motriz, os arranjos coletivos como estratégia de luta, a presença do racismo como herança colonial e as similaridades de condução da vida experienciada por elas/eles, junto as suas famílias, que na sua maioria é negra e liderada por mulheres. Fizemos um compilado das biografias das “Mulheres incríveis na história” em formato de livreto e, adicionamos à última página uma folha de autopreenchimento destacando o título “Você é incrível na minha História”, propondo uma autoria das/dos estudantes, inundada de sentidos pelas próprias trajetórias coletivas, propondo uma prática escrevivente.
Do envolvimento deste trabalho, surgiram ainda a socialização das imagens -textos-trajetórias destas personalidades negras com a comunidade escolar, em um mural no pátio da escola (figura3). Devido a demandas surgidas em nossas conversas, entendemos a importância de socializar nossas investigações. “Precisamos mostrar as mulheres negras!” – As crianças disseram… “Minha mãe ficou feliz de saber que estou conhecendo estas mulheres importantes, ela não conhecia isso na escola” – Me contou orgulhosa uma aluna que trouxe uma indicação de vídeo. “Ainda bem que eu cheguei no quarto ano pra aprender que tem coisa que a gente fala que é racismo. Eu já falei, mas não sabia … nunca me ensinaram…” – Me revelou preocupado um aluno.
Enquanto afetadas por questões de profundo vínculo com as reflexões disparadas por cada ficha, e com objetivo de divulgar conhecimento, as crianças reelaboraram as biografias em ‘fichas técnicas’, para facilitar a leitura no local de passagem que é o pátio da escola. Confeccionaram lindamente uma imagem visual para cada uma das Mulheres, utilizando a ampliação da foto da ficha biográfica e elementos de recorte e colagem bastante simbólicos à interpretação de suas histórias de vida.
Figura 3 – Intervenções e socialização das imagens das Mulheres Incríveis. Fonte: acervo pessoal (2023)
“A gente colocou uma coroa na Na Agontimé, porque ela nunca deixou de ser rainha.” À medida que estas construções foram feitas, afirmamos uma prática pedagógica que estimula a produção de saberes e conhecimento com protagonismo e indicação do que faz sentido para as crianças. O trabalho feito desta forma germina criatividade, então seguimos em nossas produções… foi desenvolvido um jogo de tabuleiro denominado “Quem sou Eu?” (figura 4), desde as informações acessadas, as crianças desenvolveram as cartas do jogo com as informações (pistas/perguntas) sobre as mulheres/ personalidades que investigamos. Este jogo se tornou um recurso híbrido, quando foi ancorado em um site de jogos online gratuito (Wordwall) onde as perguntas do jogo de tabuleiro foram reproduzidas no meio virtual (figura 5), ampliando sua forma de interação, acesso e divulgação.
Figura 4 – jogo de tabuleiro – Quem sou eu? Enegrecendo o Brasil: Mulheres incríveis na História. Fonte: acervo pessoal (2023)
O jogo foi replicado para as famílias e para a comunidade escolar, em geral. Desta forma estes materiais podem ser entendidos como recurso didático para aplicação da lei 10639/03 de forma orgânica, pois circulam e nascem da troca de experiência da nossa comunidade escolar. Ampliam o arcabouço cultural de crianças e adultos que se movimentam neste espaço, apresentando outro paradigma de fazer educativo, que se apresenta interlocutivo e com papel político-pedagógico-social.
Figura 5 – Jogo Quem sou eu? Enegrecendo o Brasil: Mulheres incríveis na História- formato virtual Fonte: https://wordwall.net/pt/resource/62660080/mulheres-incr%c3%adveis-na-hist%c3%b3ria-projeto-enegrecendo-o-brasil
Entendendo que a diferença e a diversidade na nossa sociedade devem ser celebradas, e não uma interdição de existências, saudamos a grandiosidade do que construímos em um Sarau Literário (figura 6), com degustação das produções das crianças saboreada na companhia das suas famílias, por meio de chá e bolo que preparamos com cuidado. A alimentação foi completa, do coração e do corpo, em sentindo ampliado nas possibilidades que as referências africanas e afrodiaspóricas podem nos conduzir.
Figura 6 – Sarau literário – sabores e saberes feito por crianças. Fonte: acervo pessoal (2023)
Considerando a prática docente como uma prática de pesquisa, atenta às necessidades do campo de estudo, propusemos para as crianças uma divulgação destas Mulheres tão importantes, nas redes sociais. Em interlocução com a própria experiência que eles têm em divulgação de conhecimento nas redes, foram desenvolvidos pequenos vídeos apresentando a biografia das Mulheres, junto às imagens construídas para o mural da escola (figura 7).
Figura 7 – vídeos projeto Enegrecendo o Brasil em parceria com Residência Pedagógica- UFRJ. Fonte: acervo pessoal (2023) https://www.instagram.com/reel/ C3lW0-FJmkR/?igsh=Yzc0djFwODZsa3J1
O objetivo da ampliação do material didático foi divulgar a pesquisa realizada em sala de aula e afirmar o cotidiano escolar como espaço de construção de conhecimento, desestabilizando a lógica eurocêntrica e adultocêntrica de ser cognoscente. Acreditamos que os materiais pedagógicos desenvolvidos a várias mãos, impulsionam o diálogo sobre proposições feitas A PARTIR da escola, situando as/os docentes como pesquisadores de suas próprias práticas (Freire, 2001) propulsores de políticas públicas que rompem com silenciamentos históricos e possibilitam a construção da identidade nacional sobre outros paradigmas.
A interlocução apresentada foi feita de forma coletiva, com a importante presença de estudantes de Pedagogia, do programa de Residência Pedagógica da UFRJ, projeto ao qual eu fui professora preceptora. Toda a artesania de construção de cada etapa junto as crianças e as professoras em formação, sedimentaram um projeto pedagógico comprometido com mudanças imediatas no chão da escola de Educação Básica, que não se mantém incrustada no fatalismo, pelo contrário, se contagia pela curiosidade da infância, pela ancestral perseverança das mulheres negras e pela fecundidade da nossa profissão. É deste espaço que acreditamos arar solos áridos ou férteis, lançando sementes de transformação.
A relatoria tecida aqui é parte da minha pesquisa de mestrado, pelo programa PPGEB – CAp Uerj, que devolve às escolas um material formativo-pedagógico para inspirar novos fazeres, considerando a diferença cultural no cotidiano escolar, posicionada no antirracismo e na reeducação positiva das relações étnico-raciais. O produto educacional, denominado “Relatoria Afetiva para ERER: o vivido em escolas municipais do Rio de janeiro” apresenta outras práticas inspiradoras de professoras/es da rede que nos afetam para o enfrentamento do silenciamento epistêmico como uma questão étnico-racial, desde as escolas municipais do Rio de Janeiro.
[1] Nos aparamos aqui no conceito de Cida Bento (2022) que explicita a branquitude como uma “senha” que assegura privilégios para pessoas brancas ao longo da história, concedido pela hierarquização racial, transmitidos e mantidos silenciosamente através de gerações.
Professora regente do Primeiro Segmento do Ensino Fundamental na Secretaria Municipal de Educação RJ. Mestranda no PPGEB - Programa de Pós-Graduação de Ensino em Educação Básica - Cap/Uerj (2022). Especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional (UCB). Pedagoga (UGF). Compõem o grupo de estudos GEQRA - Grupo de Estudos e Questões Raciais, de Gênero e de Sexualidade - CAp Uerj e o grupo de estudos e pesquisa GEFPRODi - Formação de professores, diversidade e diferença cultural/ UFRJ. É professora-parceira na Extensão Universitária: Universidade -Escola: troca de saberes e práticas - UFRJ. Professora Preceptora do Programa de Residência Pedagógica -PRP/UFRJ. Interessa-se em pesquisar temas como: Cotidiano escolar; Educação para as Relações Étnico-Raciais; Diversidade; Diferença Cultural e Formação de Professores. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Básica. Atualmente está lotada na E/CRE(03.13.018) Escola Municipal Isabel Mendes
EVARISTO, Conceição; MARTINS, Leda Maria. Escrevivência, oralitura. Mediação Lucia Castello Branco. Rio de Janeiro: Instituto de Arte Tear, 3 set. 2021. 1 vídeo (120 min). Publicado pelo canal Instituto de Arte Tear. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GMse92ubeXY . Acesso em: 1 abr. 2024.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. UNESP, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2020.
TRINDADE, Azoilda Loretto da. O racismo no cotidiano escolar. 1994. 249 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Instituto de Estudos Avançados em Educação, Departamento de Psicologia da Educação, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1994.
WALSH, Catherine. Notas pedagógicas a partir das brechas decoloniais. In: CANDAU, Vera. (org.). Interculturalizar, descolonizar, democratizar: uma educação “outra”? Rio de Janeiro: 7Letras, 2016. p. 64-75.
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