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“O que a carobinha te contou?”: conectando a juventude, a ancestralidade e os saberes do território

Autora: Maria Carolina Almeida de Azevedo

Esse texto visa descrever o projeto intitulado “O que a Carobinha te contou?”, desenvolvido pela professora de Inglês Carolina Azevedo, pelo professor regente Eric Jordão e pela agente de Educação Especial Amanda Soares, da Escola Municipal Professor Fábio César Pacífico. O projeto foi protagonizado pelos trinta e cinco alunos da turma 1601, e ocorreu entre maio e dezembro de 2023.

Esta ação pedagógica possibilitou trazer ciência sobre o conhecimento, as narrativas positivas e as histórias da comunidade da Carobinha, formada por uma população majoritariamente negra e localizada no bairro de Campo Grande, Rio de Janeiro. A proposta, que contou com relatos e experiências resultantes de vivências entre alunos da escola e moradores, proporcionou aos participantes possibilidades de desfazer a concepção negativa sobre a comunidade, desenvolver a identidade positiva sobre ela e sobre os que ali vivem, ao mostrar que o conhecimento adquirido no espaço escolar está intrinsecamente ligado aos saberes adquiridos no território. De maneira interdisciplinar, conectando as áreas de Língua Inglesa, História e Ciências, propôs meios de transcodificar os estereótipos que desvalorizam a comunidade da Carobinha que, segundo o senso comum, é descrita apenas como violenta, pobre e distante do centro. 

A atividade teve início na aula de Inglês em 03 de maio, quando foi apresentado à turma o livro “My grandfather is a magician”, da autora nigeriana Ifeoma Onyefulu. O livro conta a história de um menino Igbo apaixonado pelo trabalho do avô, que faz uso de plantas e dos seus conhecimentos ancestrais de cura para tratar pessoas. Além do contexto riquíssimo, e das fotografias que expressam fidelidade à narrativa, o livro traz, junto das profissões já conhecidas pelos alunos (como médico, professor, padeiro e juiz) profissões muito comuns no continente africano, como oleiro, marceneiro e ferreiro, ofícios que são passados de geração em geração.

Neste dia, com a colaboração da Agente de Apoio à Educação Especial Amanda Soares, foi feita a leitura coletiva do livro e foi explicado aos alunos sobre o contexto sócio-histórico da história, que se passa em uma vila na Nigéria. Conversamos sobre o país, sobre a importância do tratamento com ervas e dos procedimentos utilizados pelas pessoas que trouxeram este conhecimento no processo da diáspora, pois eles salvaram a vida de muitos dos escravizados e, mesmo clandestinamente, eram utilizados no tratamento da população branca também.

Usei como exemplo a história de Auntie Caroline Dye (conhecida através do professor Walé Kumbi, de Salvador), uma escravizada muito procurada no Arkansas, EUA, que teve uma estação de trem construída próximo de onde residia para atender a população que precisava de suas habilidades nos tratamentos com ervas. Neste momento, duas alunas praticantes de candomblé e umbanda explicaram para a turma alguns procedimentos utilizados por seus sacerdotes (banho de ervas, defumação e chás), fazendo referência ao conteúdo apresentado no livro.

Comentei com a turma que, nos dias de hoje, as Ialorixás, Babalorixás, pajés e benzedeiras são guardiões destes saberes. Neste momento, pensei na possibilidade de visitar uma casa de candomblé e, levá-los para conversar diretamente com um sacerdote que pudesse nos receber e explicar sobre as ervas e tratamentos utilizados por eles, aproveitando que a região conta com um grande número destes espaços religiosos. 

Em 10 de maio fizemos um exercício de interpretação e gramática em inglês sobre o livro. Neste dia, propus um trabalho em conjunto com o professor regente Eric Jordão, que prontamente concordou e conectou-se à atividade pelo viés da Ciência. O professor sugeriu a coleta das ervas medicinais durante a visita técnica e confecção de um herbário com os alunos. Ao final da aula repassamos a proposta da visitação ao terreiro e da criação do herbário para os alunos e a maioria concordou com a atividade.

Em 15 de junho, o professor Eric explicou sobre as ervas medicinais e apresentou as exsicatas. Foi feita a exibição das técnicas de coleta e cuidados necessários para a separação e identificação das amostras para o desenvolvimento de um herbário.

Entramos em contato com a Iyá Márcia Marçal, matriarca responsável pelo Ilê Asé D’Oluaiyè Ni Oyá, localizado na comunidade da Carobinha. Ela foi muito solícita e se disponibilizou a nos receber, conceder uma entrevista sobre a sua função e mostrar para os alunos a sua horta de ervas medicinais. A etapa seguinte foi a reunião com os responsáveis, feita em 21 de junho, onde conversamos sobre a visita, apresentamos o conteúdo do projeto, as leis que amparam a atividade e solicitamos as autorizações.  A reunião contou com a presença de dez responsáveis e dezesseis alunos receberam permissão para participar da visita.

Esta foi uma parte muito importante da atividade pois, além de informá-los sobre as etapas do projeto, promovemos o letramento destes responsáveis, visto que muitos deles não tiveram acesso aos temas que versam sobre as relações étnico-raciais em sua vivência escolar, principalmente sobre as leis federais 10.639/2003 e 11.645/2008.

Em 22 de junho levamos os alunos à visita técnica na casa de asé da Iyá Márcia Marçal para entrevistá-la, visitar a horta e colher as amostras para a construção do herbário. Iyá Márcia nos recebeu carinhosamente com um café da manhã e, durante a visita, os alunos foram apresentados também aos outros espaços de seu Ilê, como o salão utilizado para as cerimônias e a praça dos orixás, e assim tiraram suas dúvidas sobre as divindades e sobre a religião. Além disso, Iyá Márcia apresentou um outro espaço, onde construiu uma biblioteca para desenvolver projetos com as crianças da comunidade e nos convidou para retornar ao espaço.

Depois da visita, o professor Eric iniciou com seus alunos, em 26 de junho, incluindo os que não participaram da visita, a organização e secagem das amostras, a montagem das prensas e a preparação das exsicatas. Os alunos utilizaram o aplicativo INaturalista para identificar os nomes científicos das plantas coletadas. Foi feita a confecção das etiquetas de identificação e montagem do herbário.

Mas, não paramos por aí. Em setembro, a Amanda, que também é moradora da região, descobriu que a carobinha, árvore que dá nome à comunidade, possui propriedades medicinais e, em homenagem à escola, fizemos em outubro com os alunos o plantio de uma muda de carobinha no terreno da escola. A atividade foi seguida de uma mostra de pinturas feitas pelos alunos da turma 1601, na qual retrataram paisagens da comunidade, como a Cachoeira do Mendanha, e seus lugares de afeto, como as praças e igrejas frequentadas por eles.

Por fim, durante as atividades do mês de novembro, os alunos escreveram cartas para a Iyá Márcia Marçal como agradecimento pela recepção durante a visitação e, pelos ensinamentos sobre as ervas medicinais. Durante essa atividade, uma de nossas alunas relatou que não pode ir, pois o responsável disse que o terreiro era um local de energia muito pesada para uma criança, mas que ela discordava, e gostaria de seguir na umbanda quando crescesse.

Esse foi um momento muito emocionante para todos nós, pois Iyá Márcia Marçal, muito comovida pelos relatos e agradecimentos dos alunos nas cartas, retornou à escola para agradecer e falar sobre a importância de ter participado daquela atividade com eles, e exaltar o valor que a escola e a educação têm em nossas vidas. Segundo o seu relato, ela não teve a oportunidade de dar continuidade aos seus estudos e se sentiu muito grata pela participação em nossa atividade.

Estava previsto em nosso cronograma um concurso de fotografias para retratar os lugares de afeto da Carobinha, com a participação da comunidade escolar, mas não foi possível, pois muitos dos nossos alunos disseram não ter acesso a celulares para participar da atividade.

Portanto, o projeto “O que a Carobinha te contou?” foi impactante para todos os participantes. Foi essencial para os alunos que, com o apoio do conhecimento ancestral da Iyá Márcia Marçal, puderam desmistificar os estereótipos acerca dos espaços de religiões de matrizes africanas, combatendo deste modo a disseminação do racismo religioso, rompendo a barreira do “conhecer sobre para conhecer com” o território (Santos, 2017). Ademais, os alunos que visitaram o terreiro se tornaram multiplicadores dos saberes adquiridos nesta atividade e da transcodificação (Hall, 2016) de seus preconceitos sobre as religiões de matrizes africanas ao transmitirem aos colegas de suas turmas, e de outras, as suas experiências positivas durante a visita.

Para nós, professores e Amanda Soares, foi muito gratificante conseguir conectar os saberes ancestrais de forma interdisciplinar e materializar este conhecimento através da experiência da visitação, da confecção do herbário, do ensino de Inglês e nos demais desdobramentos desta atividade. Sabemos também quão disruptivo e transformador foi este projeto, haja vista a conjuntura sócio-histórica e as lutas travadas desde a implementação das ações afirmativas e da abordagem das relações étnico-raciais na educação brasileira, principalmente no ensino de Língua Inglesa, onde a questão das religiões de matrizes africanas passa longe das discussões curriculares.

Quanto aos responsáveis, destacamos a experiência do letramento racial durante a reunião e a mudança de paradigmas proporcionada neste contato. Segundo o relato da avó de uma das alunas participantes, que é evangélica, ela disse que permitiu a participação da neta na atividade, pois compreendeu que seria importante que a aluna passasse por esta experiência para o seu desenvolvimento pessoal.

E, por último, toda a comunidade escolar ganha com o estreitamento da relação com a escola, pois se torna visível a importância e interferência de ambos para um desenvolvimento exitoso dos nossos alunos e dos membros da comunidade.

Maria Carolina Almeida de Azevedo

Mestra em Educação, com ênfase em Diversidades e Relações Étnico-raciais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2022), possui pós-graduação lato sensu em Educação e Relações Raciais pela Universidade Federal Fluminense (2016) e graduação em Letras - Português e Inglês - pela Universidade Estácio de Sá (2010). Atualmente é professora de língua inglesa (56h) em turmas do fundamental I, da Educação de Jovens e Adultos e atua como revisora técnica do material didático de língua inglesa pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. É membra do Coletivo Docente Agbalá, do Grupo de Pesquisas GPMC (Políticas públicas, movimentos sociais e Cultura) na UFRRJ e do SEALLF (South East African Languages and Literature Forum). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Língua Inglesa, e tem interesse pelas áreas de Educação, Estudos Africanos e Afro-diaspóricos, Linguagens e Relações Raciais. Atua também como formadora em relações étnico-raciais e práticas pedagógicas em espaços de educação formal e não formal. Atua nas unidades escolares E/CRE(09.18.201) CIEP Engenheiro Wagner Gaspar Emery e E/CRE(09.18.086) Escola Municipal Professor Fábio César Pacífico.

REFERÊNCIAS

HALL, Stuart. Cultura e representação. Organização e Revisão Técnica: Arthur Ituassu; Tradução: Daniel Miranda e William Oliveira. PUC-Rio: Apicuri, 2016. 

 ONYEFULU, Ifeoma. My Grandfather is a Magician: work and wisdom in an african village. London: Francis Lincoln, 2000. 

 SANTOS, Boaventura S. Prefácio. In: GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos na luta por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. 

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