Cancel Preloader

Abre a roda, e vem sambar!

Autora: Viviane Penha Prado dos Santos

Embalada pela cadência da bateria do saudoso Mestre André[1], relembro a contagiante vivência que proporcionou a imersão na história de Elza Soares – cantora e compositora brasileira, ícone do samba, que conhecemos a partir da menina Elza Gomes da Conceição. Sou professora de Educação Infantil no município do Rio de Janeiro e, em diálogo com a proposta da Secretaria Municipal de Educação para o ano de 2022, “A criança e a cidade”, colocamos na roda a proposta do Prêmio COMDEDINE[2] daquele ano: “Narrativas e infâncias na cidade do Rio de Janeiro na literatura negra: O Prêmio COMDEDINE homenageia as professoras/escritoras Neusa Rodrigues e Sônia Rosa e suas obras” para apresentar às vinte e cinco crianças da Pré-Escola (EI – 51) do Ciep Poeta Cruz e Souza, a inspiradora trajetória da ilustre moradora da Vila Vintém, comunidade que faz parte do território de Padre Miguel, bairro em que o Ciep está localizado.

O meu compromisso com a educação antirracista faz com que minhas práticas tenham foco em apresentar a história afro-brasileira e africana, a partir de uma perspectiva positiva, alegre, resgatando a força do nosso povo, baseada nos valores civilizatórios afro-brasileiros que a intelectual e ilustre professora Azoilda Loretto da Trindade (Projeto […], 2003-) nos deixou. Nesse caminho, convidei a menina moradora da Vila Vintém, Elza Gomes da Conceição, para contar como é possível realizar sonhos, mesmo que o cenário atual não contribua. Quem diria que, a pequena que até fome passou, segundo relatos feitos na peça “A menina do meio do mundo”, se transformaria na cantora do milênio, referência na luta contra a violência doméstica, símbolo de força e inspiração para o samba-enredo da G.R.E.S Mocidade Independente de Padre Miguel no ano de 2020? Aliás, enredo muito aguardado pela comunidade verde e branco. Na fase de elaboração do projeto, assisti a peça e, esses relatos serviram de inspiração e recurso para as ações.

A partir do mundo que a cerca, a criança o lê com curiosidade, imaginação e inteligência. A intencionalidade pedagógica desse ambiente educativo precisa oferecer múltiplas possibilidades de aprendizado, para que elas possam seguir expandindo suas habilidades e desejos de conhecimento. As práticas pedagógicas na Educação Infantil garantem o direito a explorar, conhecer, investigar, interagir, criar, transformar e ampliar os conteúdos sugeridos através das ações lúdicas propostas ao grupo, e a contação de histórias é um recurso potente e enriquecedor para esse movimento conforme aponta Gomes (2023), contar histórias é uma prática educativa muito frequente na Educação Infantil. Com as comunidades africanas aprendemos a partilhar histórias e saberes para mantê-las vivas.

As narrativas de Sônia Rosa e Neusa Rodrigues, homenageadas do Prêmio Comdedine 2022, garantiram a aplicabilidade da Lei 10.639/2003 e, contribuíram afetuosamente para a valorização do protagonismo negro e construção identitária positiva, a partir de narrativas que contam a “história que a história não conta”, como cita o grande samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira (2019). Além disso, também nos instrumentaliza para intervenções pedagógicas que permitem o reconhecimento ancestral, a valorização da cultura afro-brasileira a partir do grande quilombo contemporâneo que é uma agremiação de samba. O diálogo com o enredo da Estação Primeira de Mangueira aconteceu na “capital da escola de samba que bate melhor no carnaval”, nosso bairro Padre Miguel, visando promover a apropriação da cultura local e o enriquecimento do repertório musical para ampliar uma atuação social positiva. Outros objetivos também motivaram esse percurso, como:

  • Ampliar o conhecimento sobre a história do território;
  • Conhecer a história do samba e seu valor cultural;
  • Apropriar-se de narrativas positivas que enriqueceram a formação de identidade das crianças, sobretudo as pretas;
  • Proporcionar o direito de expressão, através de ritmos musicais, da dança e do diálogo a partir da escuta atenta e afetuosa.

O desenvolvimento do projeto considerou o conhecimento já adquirido sobre o nosso bairro. Os pontos referenciais da comunidade e, a consonância com o Currículo Carioca, desencadeou uma série de ações pautadas nas narrativas literárias que reforçam aspectos da identidade e cultura negra, como: “Tequinho, o menino do samba”, “Tequinho e o ensaio da bateria” de Neusa Rodrigues e Alex Oliveira (2011a, 2011b); “Enquanto o almoço não fica pronto”, “O menino Nito”, “Jongo” e “Maracatu” de Sônia Rosa (2020, 2006a, 2006b, 2006c), que proporcionaram um diálogo sobre ritmos musicais e a audição dos relatos das crianças sobre os temas apresentados e suas vivências nas escolas de samba do bairro. Com a captação das informações, ampliamos a noção dos ritmos comparando o Jongo ao Maracatu, como outras formas de expressão corporal através dos instrumentos de percussão.

Utilizei recursos audiovisuais para enriquecer as descrições sobre os cortejos, rodas e desfiles sugerindo reproduções livres dos movimentos culturais citados. A apresentação do samba enredo do G.R.E.S Mocidade Independente de Padre Miguel “Elza Deusa Soares”, de 2020, foi uma vivência muito valiosa e contagiante, tanto que o refrão foi prontamente incorporado ao cotidiano da turma. A vida de Elza foi apresentada a partir da sua força para realizar seus sonhos e superar as dificuldades de sua trajetória, como conta os versos: “Lá vai, menina/ lata d’água na cabeça/vencer a dor que esse mundo é todo seu…” (Elza […], 2020). As crianças acolheram a menina Elza com muito afeto e carinho e, como desdobramento escrevemos uma carta para contar os nossos sonhos e construímos recursos lúdicos que reproduziram latas de água.

Os responsáveis foram envolvidos no projeto através da solicitação de relatos sobre possíveis vivências que tiveram nas agremiações locais. Essas vivências poderiam ser apresentadas por vídeos, textos, imagens e objetos que pudessem expressar o que estava sendo dito. Organizei uma vivência com instrumentos de percussão, adereços e fantasias utilizadas nas escolas de samba, para que as crianças conhecessem objetos que compõem o universo do carnaval apresentado na Marquês de Sapucaí. Nas narrativas de Neusa Rodrigues (Tequinho, o menino do samba e Tequinho, o ensaio da bateria), o menino Tequinho toca tamborim, instrumento de percussão revestido por uma membrana esticada e tocado por uma baquete. Então, propus ao grupo a construção de um exemplar a partir de materiais não estruturados e decorados individualmente. Após a construção, apresentei vídeos mostrando como esse instrumento é tocado, e criamos um naipe de tamborins, grupo de ritmistas que tocam o mesmo instrumento dentro de uma bateria de escola de samba, na turma.

O desfile das escolas de samba é a celebração de um ano inteiro de trabalho, com a dedicação dos muitos operários que fazem uma agremiação ir para a Avenida e, diante de tanto trabalho, a emoção por mais um ano concluído toma conta de todos que participam desse momento de magia, que eu já vivi algumas vezes pela Mocidade Independente de Padre Miguel, e as crianças também tivemos um momento de maravilhamento, ao término desse projeto: gentilmente a escritora e professora da rede Neusa Rodrigues aceitou realizar uma chamada de vídeo com as crianças. Relembro, com emoção, a pergunta de uma criança instantes antes da chamada iniciar: “Professora, ela existe mesmo?”. E, assim que a chamada começou, os olhos dela brilharam ao entender a resposta: “Sim! Neusa Rodrigues existe!” A autora nos atendeu e nos proporcionou um momento de maravilhamento.

O samba é mesmo contagiante! Ampliar o conhecimento sobre a nossa ancestralidade e memória, a partir de batuques e baquetas, foi enriquecedor para todos os envolvidos. O caminho foi percorrido com alegria, contribuições valiosas e relevantes para a construção da identidade positiva da turma. A curiosidade sobre a vida de Elza e o significado de suas canções promoveram debates sobre o racismo, diferenças sociais e estética, onde as crianças se posicionaram com frases do tipo: “Professora, porque a carne mais barata é a negra, se no mercado a carne vermelha custa dois mil reais?”; “Ela não tem que trabalhar porque criança não trabalha.”; “Meu pai mora na Mocidade.” (a quadra da Mocidade); “O cabelo é igual ao seu, Black Power.” (Comparação com o cabelo da professora); “O quê que tem se ele é preto? Por dentro todo mundo é igual”; “Eu gosto de caldo de feijão, feijoada eu não gosto. Tem muita coisa para comer.”; “Ele (Tequinho) sonha igual a gente.”; “Eu gosto muito do livro que elas fazem.”; “Elza, eu te amo.”

As narrativas familiares resultaram em demonstrações de afeto pelos avós, cuidado com os irmãos menores, relatos de alimentos preferidos e lembranças sobre momentos vividos no carnaval e nas escolas de samba.

O envolvimento das crianças e seus questionamentos sobre atitudes racistas podem ser apontados como os resultados mais significativos desse projeto, me movimentando para novas ações envolvendo a riqueza cultural que é o movimento do samba e sua capacidade de aquilombar e ensinar através do pulsar dos instrumentos do coração.

Link para vídeo sobre a prática:

https://drive.google.com/file/d/1HOFtjPXHNUNufCh–PQ9bWsp5txNX78c/view

_

[1] José Pereira da Silva, apelidado de Mestre André, foi um regente da bateria da GRES Mocidade Independente de Padre Miguel, a quem se atribui a invenção da “paradinha”.

[2] Prêmio de Pesquisa Escolar Idealizado pelo Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro – COMDEDINE, e realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Educação – SME, por meio da E/SUBE/Gerência de Relações Étnico-Raciais

Viviane Penha Prado dos Santos

Filha da D. Antonia e do Sr. Osmar, mãe da Isadora e do João Pedro, é professora de Educação Infantil, pedagoga, escritora, pós-graduada em psicologia infantil, pós-graduada em Gestão escolar e coordenação pedagógica, especialista em Relações étnico-raciais, especialista em Práticas pedagógicas mestranda em Educação pelo UFRRJ. Atua no E/CRE(08.17.816) Espaço de Desenvolvimento Infantil Pedro Moacyr.

Referências

ELZA Deusa Soares: samba-enredo. [composição:] Sandra de Sá et al. Rio de Janeiro: G. R. E. S. Mocidade Independente de Padre Miguel, 2020.

GOMES, Nilma. Infâncias negras: vivências e lutas por uma vida justa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.

PROJETO A Cor da Cultura. Consultoria pedagógica Azoilda Lotetto da Trindade. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho; Brasília, DF: Ministério da Educação, 2003.

RODRIGUES, Neusa; OLIVEIRA, Alex. Tequinho e o ensaio da bateria. Ilustrações Mello Menezes. Rio de Janeiro: Rovelle, 2011a.

RODRIGUES, Neusa; OLIVEIRA, Alex. Tequinho o menino do samba. Ilustrações Mello Menezes. Rio de Janeiro: Rovelle, 2011b.

ROSA, Sonia. Enquanto o almoço não fica pronto. Ilustrações de Bruna Assis Brasil. Rio de Janeiro: ZIT, 2020.

ROSA, Sonia. Jongo. Ilustrações Rosinha Campos. Rio de Janeiro: Pallas, 2006a.

ROSA, Sonia. Maracatu. Ilustrações Rosinha Campos. Rio de Janeiro: Pallas, 2006b.

ROSA, Sonia. Menino Nito. Ilustrações Victor Tavares. Rio de Janeiro: Pallas, 2006c.

plugins premium WordPress