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A construção de uma educação antirracista nas rodas de leitura

Autora: Julia Nelly dos Santos Pereira


APRESENTAÇÃO GERAL

Este projeto foi desenvolvido na Escola Municipal General Humberto de Souza Mello (Morro da Mangueira) – 2ª CRE, com os 3º, 4º e 5º ano do ensino fundamental, a partir das rodas de leitura. O objetivo principal deste projeto foi fortalecer as expressões culturais afro-brasileiras e indígenas, a partir de uma atividade protagonizada por uma professora negra, como estratégia de preservação da identidade cultural através da promoção da leitura, o que auxiliou no estabelecimento de um imaginário positivo relacionado às questões afro-brasileiras. Este trabalho foi premiado no Prêmio Anísio Teixeira 2022, e fica comprovada a sua relevância pela premiação que torna esta prática visível, favorecendo a continuidade do projeto ao incentivar as ações promovidas no cotidiano de uma escola pública.

Além disso, estabelece uma política educacional comprometida com o bom desempenho da sociedade que passa a se reconhecer e começa a se alfabetizar de modo mais efetivo. Transformam também os impactos negativos da pandemia de COVID 19 na população, impactando positivamente na alfabetização dos alunos.

A proposta de tratar a leitura, escrita e oralidade de mitos e narrativas tradicionais entre grupos populacionais, trouxe fôlego para a escritura deste trabalho. Comecei a refletir sobre a minha prática pedagógica e, acredito que ela tenha sido baseada no legado de Darcy Ribeiro, um educador que, como todas as pessoas grandiosas, soube associar diversas áreas do conhecimento, tão necessárias para a nossa vida, como a política e a antropologia.

Neste sentido, suas ideias permanecem atuais, principalmente na luta pela causa indígena e pelo ensino público para todas as crianças brasileiras, trazendo à tona uma pergunta filosófica: “quem somos nós?”. Acreditamos que essa descoberta se faz com conhecimentos sobre os livros e com a capacidade do brasileiro se reinventar. E, essas narrativas vão costurando de modo mágico[1] esta estrutura textual, e embasando o modo de pensar sobre o fazer cotidiano.

Com base na Lei 11.645/2008[2], que estabelece como obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e privados, a temática “História e cultura afro-brasileira e indígena”, a Escola Municipal General Humberto surge como um ambiente apropriado para trabalhar a diversidade. É uma escola pública que atende majoritariamente aos moradores do Morro da Mangueira, que precisam reconhecer sua cultura, bem como lidar com questões relativas à discriminação e ao preconceito, presentes no cotidiano.

Neste sentido, eu enquanto docente, organizei um planejamento para as rodas de leitura com atividades e abordagens metodológicas que tratassem da cultura negra e indígena de modo transdisciplinar. O desafio maior foi lidar com o mito da democracia racial, a colonialidade e o racismo epistêmico presente e manifesto em nossas crianças (Santos; Francisco, 2018).

Os alunos estavam em processo de alfabetização, então, em nossas atividades houve o estímulo à leitura e diversas formas de escrita a partir dos registros das atividades. Em todas as aulas, eles produziram uma reflexão sobre a leitura oferecida e, avaliaram o que foi apresentado. Acreditamos no desenvolvimento do gosto pela leitura, que pode evoluir para o prazer, e alcançar a fruição. Pretendemos que a leitura não seja feita por hábito, mas pela reflexão e criticidade como nos ensina Raquel Villardi (2012).

Enfim, a ideia de uma formação para o ser integral, que segundo Pestana (2014, p. 55)

se refere ao desenvolvimento do processo educativo que pense o ser humano em todas as suas dimensões – cognitiva, estética, ética, física, social, afetiva, ou seja, trata-se de pensar uma educação que possibilite a formação integral do ser humano, em todos os seus aspectos (Pestana, 2014, p. 55).

Koch (2004, p. 12), nos ensina que “o texto é um lugar de interação entre atores sociais e de construção interacional de sentidos”. Por isso, cabe lembrar dos Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa (1997) que estabelecem a importância do domínio da palavra pública para o exercício da cidadania. Assim, quanto mais o aluno fala de si e de seu mundo, mais se reconhece. Cabe revelar que a escolha dos livros paradidáticos deveu-se a literariedade que apresentam, e não apenas um foco na temática e que a maioria deles estavam na sala de leitura da unidade escolar. Alguns exemplos de livros escolhidos foram: Rapunzel e o Quibungo (2012), A moça artista do alto do morro (2017), Omo-Oba histórias de princesas e príncipes e, Um dia na aldeia (2012).

Os valores são as coisas abstratas em que acreditamos, os conceitos que dão sentido às ações do homem no mundo. Um conjunto de valores aponta para uma ideologia, uma visão de mundo em que estão inscritos objetivos. Nesse sentido, as aulas de roda de leitura desenvolveram o respeito à palavra do outro, espera do turno de fala, utilização de fórmulas de polidez nas situações de interlocução, naturalidade para ouvir e fazer críticas.

Há diferentes formas de ler e, uma dessas formas privilegia o texto escrito, a decodificação dos símbolos gráficos, a compreensão das palavras e expressões e, consequentemente, seu sentido mais imediato. A essa prática denominamos concepção reduzida de leitura (Capello; Coelho, 2003, p. 36). E, voltando à ideia de leitura ampliada, podemos dizer que esta concepção põe em xeque um pressuposto que muitos de nós utilizamos quando trabalhamos com textos na escola: o de que existe uma interpretação única. Vale ressaltar que os sentidos de um texto dependem, sim, de nossa visão social do mundo.

PLANOS DE AULA: SUAS INTENÇÕES E OBJETIVOS

Nos planos, imaginei que meus alunos teriam um movimento etnográfico[3] quando entrassem em contato com as histórias, construindo a capacidade de reconhecer que existem diferenças entre as pessoas, respeitando as mesmas. Um primeiro passo, que seria a alteridade e, de modo mais ambicioso, se possível, construir a empatia que requer um movimento ainda maior que é o de se colocar no lugar do outro e compreender seus sentimentos.

Diante de uma defesa apaixonada pela educação pública, gratuita e de qualidade, o cuidado com o planejamento e, como este deveria se desenvolver em sala de aula, foi enorme. Partindo dos estudos de Azoilda Loreto Trindade sobre os valores civilizatórios afro-brasileiros (2021), resolvi pinçar alguns desses valores, mesmo ciente de que há uma infinidade deles. Um dos mais importantes é o princípio do axé (energia vital) que esclarece que tudo que é vivo e existe se faz possuidor desta energia: planta, água, pedra, gente, bicho, ar, tempo e o sagrado que faz com que haja interação constante. É dizer as nossas crianças que elas são sagradas, potentes, cheias de vida.

O ato de contar histórias remonta à oralidade, que tem suas regras de falar e ouvir, o que redimensiona a troca. A roda de leitura com seu valor de circularidade, movimento e renovação. A corporeidade como uma necessidade para aceitarmos os nossos corpos concretos como um patrimônio que não precisa ser exposto às idealizações e merece cuidado. Compreender a ludicidade da escola que é um espaço de alegria, gosto pelo riso e pela diversão, nos faz lembrar que, mesmo no ensino fundamental, é preciso garantir o espaço do brincar.

Também associamos a estes valores, os valores civilizatórios indígenas (Silva, 2013) que promovem um olhar para a vida comunitária, para as narrativas míticas e de surgimento da humanidade, um valor da terra que é a própria vida do povo indígena. A filosofia indígena é feita com água, terra, urucum, mandioca, igualdade e amor à vida com um respeito enorme pela dignidade da pessoa humana.

Neste artigo, me atenho a relatar, brevemente, uma única experiência com os alunos. No entanto, é preciso saber que em cada mês havia um tema a ser tratado, havendo um aprofundamento metodológico com progressão deles. Por isso, escolhi o relato da turma 1401 que era considerada uma das mais difíceis da escola. Havia um grupo de alunos praticantes de uma religião neopentecostal, que atribuíam o trabalho com africanidade à “macumba”. Sabiam ler e preferiam escrever com letra bastão. Apenas alguns usavam letra cursiva e a sala de aula deles era cheia de referências à gentileza, e solidariedade pela professora regente.

Uma das histórias lidas no mês de maio foi “Rapunzel e o Quibungo”, de Cristina Agostinho e Ronaldo Simões Coelho (2012) que rendeu muita conversa. Os alunos da turma 1401 recusavam-se a crer que pudesse existir princesa negra e, na releitura da Rapunzel, eles pediram para “consertar” a história e pintaram uma Rapunzel loira.

Uma aluna da turma 1502 fez um comentário que demonstrou sua percepção de aspectos específicos e a capacidade de observar a história como um todo: “Por que o Quibungo utilizou o cabelo de Rapunzel para subir se antes ele tinha utilizado a escada?” No início, eu fiquei desconcertada, porque não havia pensado nisso. A turma pediu que eu revisse a história para verificar se a escada tinha aparecido antes ou depois. Realmente, o príncipe pega a escada antes e depois, sobe pelos cabelos de Rapunzel. Eu sugeri aos alunos que, provavelmente, por ser uma obra adaptada e traduzida, poderia ter se fundido na história da Rapunzel que eles conheciam e, a informação da escada não existiria na outra história que serviu de fonte.

Então, conversamos sobre a continuidade das histórias e como isso se dá nos filmes e novelas. É possível perceber erros de continuidade? E começamos a ver isso na internet. Foi uma aula de muito aprendizado e diversão.

No dia subsequente foi a vez de “A moça artista do topo do morro”, escrito por Helena Lima (2017), e o comentário do aluno da turma 1502 foi muito interessante: “Os turistas são muito importantes. Quando eles vão no morro tem festa”. E conversamos longamente sobre as festas comunitárias, o que elas representam.

No dia seguinte, em “Omo-oba: histórias de princesas e príncipes”, de Kiusam de Oliveira (2023) há uma interpretação que conecta as princesas ao imaginário religioso. As princesas são orixás femininas, divindades da mitologia iorubá, com toda sua força e poder. Trabalhar a mitologia religiosa desta forma, não agride a religiosidade dos alunos, mas favorece uma compreensão cognitiva do assunto para que se possa combater o preconceito que muitas vezes já se apresenta em suas falas. O discurso pejorativo, que trata tudo o que é produzido em África como “macumba”, cercou nossas aulas e, em alguns momentos, fiquei temerosa que aparecesse, mas, qual não foi minha surpresa quando uma aluna disse que havia entendido o uso dos turbantes nas religiões de matriz africana.

Vale dizer que não é fácil desconstruir o que trazem de preconceitos, porém tem sido muito recompensador. A beleza com que a autora escreve a narrativa arrebatou os corações dos alunos. Na turma 1502 havia um aluno moçambicano e ele falou como são os ancestrais, porque ele, como mulçumano, respeitava o sagrado dos orixás. Enfim, aprendemos muitas coisas ao conviver com a maneira circular de ensinar. Ouvimos e trocamos informações que nos fizeram humanizados e mais observadores. Até porque os alunos são especialistas na arte de ver detalhes e apreender o mundo.

[1] A magia é um movimento importante no processo de escritura e desenvolvimento da obra, principalmente por ser responsável pelo encantamento e fluidez da obra.

[2] Lei 11645 – Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. A Lei entrou em vigor em 10 de março de 2008.

[3] O Movimento etnográfico trabalha com uma observação participante e flutuante que atuam de modo complementar bem como as categorias de escutar/ouvir e olhar/ver porque favorecem a observação das crianças em seus movimentos de aprendizagem e em suas construções feitas por desenhos e textos escritos ou orais.

Julia Nelly dos Santos Pereira

Doutoranda em memória social (UNIRIO), mestre em educação (UERJ), graduada em Letras (português-literaturas) – UFRJ, membro da Cátedra Internacional de Direito e Antirracismo Esperança Garcia, Prêmio Anísio Teixeira 2022 com trabalho na Lei 11645/08, professora etnoeducadora da Rede Carioca desde 2015, professora da SME-RJ, capacitadora do projeto a cor da cultura. Atua na E/CRE(02.09.008) Escola Municipal Madrid e a experiência citada ocorreu em 2022 na E/CRE(02.09.014) Escola Municipal General Humberto de Souza Mello

REFERÊNCIAS 

AGOSTINHO, Cristina; COELHO, Ronaldo Simões. Rapunzel e o Quibungo. Belo Horizonte: Mazza, 2012. 

 CAPELLO, Cláudia; COELHO, Lígia Martha. Língua Portuguesa na educação 1. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2003. 

 LIMA, Helena. A moça artista do topo do morro. Rio de Janeiro: Lago de histórias, 2017. 

 KOCH, Ingedore G. V. Introdução a linguística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 

 OLIVEIRA, Kiusam de. Omo-oba: histórias de princesas e príncipes. Rio de Janeiro: Companhia das Letrinhas, 2023. 

 PESTANA, Simone Freire Paes. Afinal o que é educação integral? Revista Contemporânea de Educação, vol. 9, n. 17, jan./jun. 2014. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rce/article/viewFile/1713/1562. 

 SANTOS, Luane Bento dos; FRANCISCO, Mônica da Silva. A escola diante o desafio de educar para a diversidade étnico-racial. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL EDUCAÇÃO, CIDADANIA E EXCLUSÃO (CEDUCE), 5., 2018, Niterói. Anais […]. Niterói: UFF, 2018. 

 SILVA, Edson; SILVA, Maria da Penha (org.). A temática indígena na sala de aula: reflexões para o ensino a partir da Lei 11.645/2008. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013. 

 SILVA, Gisele Rose. Azoilda Loreto Trindade: o baobá dos valores afrocivilizatórios. Rio de janeiro: Metanoia, 2021. 

VILLARDI, Raquel. Ensinando a gostar de ler e formando leitores para a vida inteira. Rio de Janeiro: Qualytimark, 2012

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