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Nossa história de verdade é sobre diversidade

Autora: Monique Coletti de Almeida

O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, “democracia racial”, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais.

          Darcy Ribeiro (1995, p. 24)

Darcy Ribeiro (1922-1997), em seu livro “O Povo Brasileiro” (1995), nos convida a refletir sobre a composição étnico-racial e cultural do Brasil. Possibilitando questionamentos sobre nossa identidade, uma vez que, geralmente, nos deparamos com a  tentativa de apagamento da participação de negros e indígenas na construção da história do Brasil, através de um  discurso que amplia a alienação da população, já que a falsa democracia racial aumenta incessantemente a desigualdade, tornando cada vez maior os tais “abismos sociais”.

A implementação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que alteram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) para incluir a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena no currículo da educação básica, propõe o resgate da contribuição desses povos e a valorização dos aspectos herdados por eles, ampliando através desta abordagem a percepção dos estudantes enquanto seres pertencentes de uma sociedade multicultural com raízes multirraciais. A partir dessas reflexões, surgiu a necessidade de desenvolver uma prática pedagógica abrangendo a educação antirracista, conforme se propôs no projeto intitulado “Nossa História de Verdade é Sobre Diversidade”.

As atividades foram desenvolvidas, inicialmente, com minha turma de sexto ano carioca da Rede Municipal de Ensino, no CIEP Professor Lauro de Oliveira Lima, em Rio das Pedras (Jacarepaguá) e, tão logo estendidas aos demais alunos da escola, depois expandida a outras Unidades Escolares do território.  A prática foi idealizada para todo o ano letivo, a partir de um projeto inicial. Bender (2014) indica que a Aprendizagem Baseada em Projetos (ABP) envolve uma grande mudança na responsabilidade de ensinar, em que o professor atua como facilitador, normalmente utilizando-se um ponto de partida, uma “âncora”, para iniciar. Neste caso, a “âncora” principal foi a letra do samba-enredo que deu o título do carnaval carioca de 2019 à Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.

“Brasil, chegou a vez

De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês..”

Mangueira, 2019

 

Apresentado pelo carnavalesco Leandro Vieira, o enredo do samba “História para ninar gente grande” dos compositores Luiz Carlos Maximo Dias, Silvio Moreira Filho, Danilo de Oliveira Firmino, Deivid Domenico Ferreira Lima, Marcio Antonio Salviano, Ronie de Oliveira Machado, Tomaz Disitzer Carvalho de Miranda, Vitor Arantes Junior e Manuela Trindade Oiticica (co-autora), tendo como intérprete Marquinhos Art’Samba, traz uma série de referências históricas que, até então não eram ensinadas e logo despertaram o interesse dos alunos.

O trabalho foi pautado em complemento às unidades de ensino sugeridas na Priorização Curricular da Rede de Ensino, documento indicativo de objetos do conhecimento e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento (OAD) com maior necessidade de observação no planejamento e replanejamento docente. Foi realizado um detalhamento das estrofes do samba e a interlocução da leitura que elas propõem com as demandas dos estudantes.

Dentre os principais objetivos desta prática estão: educar para as relações étnico-raciais; ressignificar saberes; conhecer e compreender histórias que nos integram; compor experiências que unem e agregam entre semelhanças e diferenças; mostrar que uma educação antirracista é possível; investir num convívio que visa o equilíbrio em meio à diversidade, possibilitando a troca de experiências.

Para propor uma sistematização a partir da troca, foi importante fazer um levantamento dos conhecimentos prévios dos estudantes, realizando uma sondagem inicial do que eles compreendem por diversidade, preconceito e o que conhecem sobre a nossa história. Seguimos com a apresentação do samba-enredo que propõe uma conversa envolvendo escuta e troca entre a história aprendida, contada aos olhos dos colonizadores, e a história real, vivida e constituída da participação de negros e indígenas. Iniciamos com os questionamentos dos alunos sobre a proposição da letra, com destaque às personalidades desmistificadas nela, além de movimentos históricos importantes que foram citados.

Foi proposto que pesquisassem a respeito dos conhecimentos e percepções por parte dos familiares e vizinhos quanto às personalidades que aparecem na letra do samba e, o que as pessoas entrevistadas entendem por racismo, atitudes racistas e conceitos relacionados. Ao trazerem o resultado para a sala de aula, perceberam que a maioria das pessoas desconhece o conteúdo que a letra nos traz e, muitos não reconhecem a existência do racismo. A partir daí, traçamos nossas demandas e metas de conhecimento.

A primeira proposta foi apresentar a estrutura do poema (música) tal qual sua finalidade, partindo da unidade de ensino de Língua Portuguesa relativa à tipologia textual. Após uma roda de conversa, ouvimos o samba em diferentes versões, disponíveis no aplicativo Spotify e no YouTube, inclusive uma versão gravada por Leci Brandão que é uma das personalidades que aparece na letra em questão. A turma foi dividida em grupos e cada grupo ficou com uma estrofe para interpretar e explanar suas compreensões e dúvidas que envolveram os nomes Dandara, Dragão do Mar de Aracati, Leci Brandão, Jamelão, as Marias, Mahins, Marielles e Malês, além dos termos “Cariri”, “Caboclos de Julho” e o significado de alguns versos, tais como “Desde 1.500 tem mais invasão do que descobrimento”, “O avesso do mesmo lugar”, “Quem foi de aço nos anos de chumbo”, entre outros.

Seguimos com a divisão dos conteúdos por datas de acontecimentos e temáticas relacionadas, ressaltando que embora tenha aproveitado algumas datas consideradas importantes para desenvolver o trabalho aqui descrito, é imprescindível que as práticas antirracistas e a educação para as relações étnico-raciais ocorram diariamente, não se resumindo a essas datas. A projeção das atividades foi realizada em bimestres, sendo quatro ao longo do ano letivo. Iniciamos o primeiro bimestre com o questionamento sobre o que é cultura, tendo o carnaval como tema. Assistimos um vídeo sobre o carnaval e um trecho do desfile da Mangueira de 2019, aproveitando para debater sobre pontos importantes que o samba nos traz.

Seguimos atendendo à priorização curricular, com foco nos direitos humanos e cidadania, abordando o nome de Marielle Franco que, em vida, enquanto vereadora foi defensora dos direitos humanos na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Assistimos vídeos sobre a biografia de Marielle e os estudantes reproduziram sua imagem em forma de desenho, através de uma releitura. Surgiu a ideia de confeccionarmos “retratos” de cada personalidade e expor nos corredores da Unidade Escolar, para compor o que os alunos nomearam de “corredor histórico”, na tentativa de entregar para o público o “país que não está no retrato”, como traz um dos versos do samba. Os retratos foram produzidos coletivamente, através da projeção da imagem, e sua reprodução em uma folha de papel 40kg, foram pintados com a participação de todos os envolvidos no processo.

Avançamos com temáticas sobre o “dia do índio” que é comemorado em 19 de abril (data proposta em 1940 pelas lideranças indígenas com objetivo de preservação e respeito de seus valores culturais), criado pelo Presidente Getúlio Vargas, através do decreto-lei 5.540 de 1943, com esse título. Porém, atualmente não usamos mais esta nomenclatura, alterada pela promulgação da Lei 14.402 em 8 de julho de 2022 e o termo “dia dos povos indígenas” é o que passa a ser considerado desde então. Os alunos pesquisaram sobre diversas etnias, suas localidades e número de povos que existiam, realizando estudos sobre a extinção desses povos e os movimentos de resistência na luta contra o domínio europeu.

No mesmo período, desenvolvemos temáticas que envolvem a chegada dos portugueses ao Brasil, criando questionamentos sobre o termo “descobrimento”, já que o verso “Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento” dialoga com o fato de que o país foi invadido e não descoberto, uma vez que os nativos já habitavam a terra encontrada. Os alunos fizeram desenhos e charges para representar o significado desse aprendizado, e surgiu a ideia de produzirmos um livrão com a letra do samba, em que cada estrofe compõe uma página deste livro e cada página é ilustrada pelos trabalhos deles. O livro tem formato sanfonado e foi aberto durante a mostra de dança, no dia da culminância, fazendo alusão aos versos que dizem “A história que a história não conta”, “O avesso do mesmo lugar”, sendo a representação de uma história contada aos olhos deles, alunos, cidadãos, seres pensantes e protagonistas dessa história.

Em maio, ao abordarmos a questão da abolição da escravidão, trabalhamos os versos que falam “Não veio dos céus, nem das mãos de Isabel”, “A liberdade é um Dragão no mar de Aracati” e falamos sobre Francisco José do Nascimento (também conhecido como “Dragão do Mar”), Zumbi dos Palmares e Tia Ciata, aproveitando a matriz curricular de Geografia que abordava a história do samba e as rodas de jongo. Elaboramos uma apresentação de jongo para a culminância e ensaiamos ao longo do processo.

No início de julho, conversamos sobre o termo “Caboclos de Julho” e fizemos uma explanação rápida do que foi o movimento para entender o surgimento deste termo. Pesquisamos e aprendemos sobre Maria Quitéria e aproveitamos para falar da importância das mulheres e suas lutas, abordamos a temática sobre o “Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha”, comemorado em 25 de julho, estabelecido pela Lei nº 12.987/2014, com o propósito de dar visibilidade para o papel da mulher negra na história brasileira, através da figura de Teresa de Benguela que foi exemplo de resistência e importante liderança na luta contra o regime escravista. Trouxemos, ainda, os nomes de Dandara, Luiza Mahin, Maria Felipa e Leci Brandão. Solicitei pesquisas que envolvessem mulheres negras que tenham feito a diferença em suas próprias histórias. Eles trouxeram diversas personalidades para o contexto escolar e realizamos uma roda de conversa sobre a questão da visibilidade feminina em geral. Aproveitei para falar sobre o Dia Internacional dos Povos Indígenas que é comemorado em 09 de agosto, estabelecido pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da resolução 49/214 de 23 de dezembro de 1994, com o objetivo de promover a conscientização sobre a importância destes povos para as sociedades mundiais. Criamos questionamentos sugeridos nos versos “Mulheres, tamoios, mulatos, eu quero um país que não está no retrato” e assistimos o vídeo “De onde vieram os povos indígenas” de Daniel Munduruku.

Em setembro, aproveitando a temática “Independência do Brasil”, discutimos alguns movimentos que ocorreram na busca dessa independência, considerando a live “Histórias que a história não conta: o bicentenário da independência na perspectiva antirracista”,  produzida pela Gerência de Relações Étnico-Raciais (2022), e transmitida em parceria entre MultiRio e a Escola de Formação Paulo Freire (EPF) no dia 22 de junho de 2022, às 10h, pelo Canal do Professor no aplicativo Rioeduca em Casa e pelo canal da EPF no YouTube,  em que o professor Renato Alves de Carvalho Junior, nos convida a reconhecer novas abordagens sobre fatos históricos, fazendo referência justamente ao samba-enredo “História pra ninar gente grande”. Aproveitamos para esclarecer algumas dúvidas que ainda apresentavam.

Propus aos alunos que escolhessem, dentre as personalidades que trabalhamos, aquela que mais se identificaram e produzissem tirinhas em quadrinhos para compor nosso livrão. Eles sugeriram a confecção de um jogo da memória composto por essas personalidades e suas respectivas biografias, além de um mapa do Brasil com imagens sobre diversidade. O jogo foi confeccionado com tampas de potes de sorvete. Na culminância, realizada na semana da Consciência Negra, que é comemorada em 20 de novembro, dia instituído pela lei 12.519/2011, para referenciar a morte de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares e símbolo de resistência na luta contra a escravidão.

Apresentamos todos os trabalhos produzidos e, ao final do processo, os alunos foram capazes de reconhecer os elementos responsáveis pela configuração de um racismo estrutural, explicado por Almeida (2018) como oriundo da própria estrutura social em que comportamentos e processos, tanto individuais quanto institucionais, são produtos de uma sociedade onde o racismo não é exceção, mas sim, regra. Segundo Ribeiro (2019), essa situação é agravada pelo fato de que no Brasil existe uma falsa sensação de que aqui a escravização ocorreu de maneira mais branda. Os alunos entenderam, então, que práticas antirracistas são necessárias, percebendo e compreendendo a importância de seu protagonismo no processo ensino-aprendizagem.

Link para vídeo sobre o trabalho: https://drive.google.com/file/d/1RhTok-Eiud97rDHr9XkXyeAgcrC_qJdy/view?usp=sharing

Monique Coletti de Almeida

Professora da Secretaria Municipal de Educação desde 2003, professora de Educação Física formada pela Universidade Estácio de Sá, especialista em Educação antirracista (curso pela UFRJ), professor II de turma de sexto ano carioca, Professora Orientadora na EJA Rio. Atua no E/CRE(07.16.203) CIEP Professor Lauro de Oliveira Lima.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. 

 BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Seção 1, Brasília, DF, jan. 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 18 jun.2024. 

 BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União. Seção 1, Brasília, DF, mar. 2008. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato-2010/2008/lei/11645.htm. Acesso em: 18 jun. 2024. 

 BRASIL. Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. Institui o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, Diário Oficial da União. Seção 1, Brasília, DF, nov. 2011. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato-2010/2008/lei/11645.htm. Acesso em: 10 jul. 2024. 

 BRASIL. Decreto-Lei nº 5.540, de 2 de junho de 1943. Considera o “Dia do Índio” a data de 19 de abril. Diário Oficial da União. Seção 1, Brasília, DF, p. 87054, jun. 1943. Disponível em: http://www.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-5540-2-junho-1943-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 17 set. 2022. 

 BRASIL. Lei nº 12.987, de 2 de junho de 2014. Dispõe sobre a criação do Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Diário Oficial da União. Seção 1, Brasília, DF, p. 4, jun. 2014. Disponível em: http://www.2.camara.leg.br/legin/fed/lei/12987-2-junho-2014-778851-publicacaooriginal-144294-pl.html. Acesso em: 10 jul. 2024. 

 BENDER, Willian N. Aprendizagem baseada em projetos: educação diferenciada para o século XXI. Porto Alegre: Penso, 2014. 

 GERÊNCIA DE RELAÇÕES ÉTNICO RACIAIS. Histórias que a história não conta: O bicentenário da independência na perspectiva antirracista. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, 22 jun. 2022. 1 vídeo (60 min). Publicado pelo canal Escola de Formação Paulo Freire. Disponível em http://youtu.be/OFyi5-miFEs. Acesso em: 18 jun. 2024. 

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil, 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 

RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 

 RIO DE JANEIRO (Cidade). Secretaria Municipal de Educação. Material Rioeduca: 2º semestre 2022: 6º ano [Língua Portuguesa, Matemática, História, Ciências e Geografia. 1º, 2º, 3º e 4º bimestres]. Rio de Janeiro: MultiRio, 2022.

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