Autora: Virgínia de Oliveira do Espírito Santo
INTRODUÇÃO
No Ginásio Educacional Tecnológico (GET) Brant Horta, desde janeiro de 2022, desenvolvemos uma prática de ensino envolvendo os alunos dos 6º, 7º, 8º e 9º anos, do Ensino Fundamental II, na temática da Cartografia Social, Memória e Resgate da Identidade Negra na Penha. Com a participação de 300 alunos, exploramos o território ancestral da Penha, do quilombo à construção do enaltecimento do território ancestral da Penha, através da disciplina de Geografia, com o auxílio da sala de leitura da escola. Esta experiência não apenas enriqueceu o entendimento histórico-cultural dos estudantes, mas também fortaleceu as consciências sobre questões de identidade e justiça social, promovendo um aprendizado significativo dentro e fora da sala de aula.
O objetivo principal do nosso plano de aula foi promover a compreensão profunda sobre a história e cultura afro-brasileira, com destaque à importância histórica dos quilombos cariocas e das favelas. Procuramos criar um ambiente educacional inclusivo e participativo, para que todos os estudantes pudessem construir suas identidades raciais e culturais de forma positiva e valorizada, integrando a cultura maker e a tecnologia digital, a fim de proporcionar uma abordagem inovadora e aplicada, conectando os alunos de forma significativa com a diversidade étnica brasileira.
Seguindo o planejamento, embarcamos em uma experiência profunda de descoberta e aprendizado sobre a história e identidade negra na Penha, um bairro rico em cultura afro-brasileira e história quilombola. Ao longo desta viagem, mergulhamos em uma vivência que vai além dos livros didáticos, explorando territórios ancestrais e contemporâneos que moldaram não apenas o bairro, mas também nossa própria compreensão de identidade racial e comunitária.
VIVENCIANDO A IDENTIDADE NEGRA NA PENHA: REFLEXÃO, CARTOGRAFIA E MEMÓRIAS AFETIVAS
Tudo começa com uma reflexão essencial: por que é crucial conhecer, valorizar e potencializar a história e identidade negra na Penha? Esta questão serviu como pano de fundo enquanto discutimos o conceito de identidade racial. Afinal, entender quem somos e de onde viemos é fundamental não apenas para nossa própria autoimagem, mas também para a união e inclusão dentro de nossa comunidade.
A experiência se expande com a introdução à cartografia social, uma ferramenta poderosa que nos permite mapear territórios não apenas geográficos, mas também culturais e identitários. Segundo Roberto Antônio Finatto e Maria Isabel Farias (2021), a cartografia social nos ajuda a valorizar as potencialidades de espaços significativos, como fizemos com o bairro da Penha, revelando a complexidade e a riqueza de suas histórias e identidades entrelaçadas.
Em um momento de reflexão coletiva, os alunos foram convidados a compartilharem suas memórias afetivas da Penha e da cultura afro-brasileira. Essas narrativas pessoais não apenas enriqueceram nossa compreensão, mas também serviram como alicerces para a construção de um “mapa afetivo” do bairro. Cada marcação nesse mapa não é apenas um ponto no espaço, mas um testemunho vivo da história e da cultura que nos cercam.
Iniciamos a primeira aula apresentando o plano e explicando a importância de conhecer a história e identidade negra na Penha. A importância dessas questões foi destacada por uma discussão sobre identidade racial e a introdução à cartografia social para mapear territórios culturais e identitários. A discussão foi intensa e reveladora, com os alunos compartilhando suas próprias experiências e compreensões de identidade racial. Sentimos a necessidade de destacar essa importância ao perceber como muitos alunos desconheciam as ricas histórias e contribuições da comunidade negra local. Isso reforçou a urgência de proporcionar uma ação que valorizasse e resgatasse essas narrativas.
Na segunda aula, incentivamos os alunos a compartilharem memórias pessoais relacionadas à Penha e à cultura afro-brasileira, discutindo como essas memórias constroem nossas identidades e preservam culturas. Vários alunos falaram sobre suas visitas ao Parque Ary Barroso, lembrando as festas e eventos culturais que ali aconteceram. Outros destacaram a importância da Igreja da Penha, não só como um marco religioso, mas também como um símbolo de resistência e reunião comunitária. Memórias das ações do grupo de dança Passinho Carioca no território, onde muitos participam na Arena Cultural Dicró, foram especialmente marcantes, evidenciando como a música e as artes são partes vitais da identidade local. Além disso, muitos alunos mencionaram o baile funk na praça da Vila Cruzeiro, e as batalhas de slam na quadra da Rua Crato, como elementos culturais vibrantes que influenciam profundamente suas vidas e identidades. Em casa, os alunos criaram um “mapa afetivo” destacando esses e outros lugares representativos, como o Largo da Penha, onde muitos relataram experiências de infância e momentos de celebração comunitária. Essas atividades ajudaram a identificar o impacto que esses espaços têm na formação das identidades culturais e pessoais dos alunos.
Na terceira aula, exploramos a história da Penha desde o período dos quilombos até os dias atuais, destacando figuras históricas como Mestre Touro e Donga, que foram fundamentais na preservação da cultura e resistência afro-brasileira. Mestre Touro, com seu irmão Mestre Dentinho, são pioneiros da capoeira na Vila Cruzeiro, enquanto Donga deixou sua marca gravando o primeiro samba registrado, “Pelo Telefone”, no início do século XX.
Na quarta aula, aprofundamos a cartografia social, explicando seu funcionamento e importância. Orientamos os alunos na criação de mapas da Penha, marcando locais culturais, históricos e de valor pessoal. Esses mapas não apenas destacaram a rica tradição cultural e histórica da Penha, incluindo o papel marcante da Igreja da Penha como símbolo de resistência, mas também ressaltaram a contribuição de figuras como Adriano “Imperador”, cuja trajetória no futebol iniciou no bairro, e o Dj Renan da Penha, que colocou a Penha de novo no cenário musical brasileiro. Essa abordagem integrada fortaleceu o vínculo dos alunos com a comunidade e ampliou compreensão sobre a importância da Penha na história afro-brasileira e na cultura carioca. Eles foram incentivados a pesquisar a história de locais específicos, como o parque Ary Barroso, a Igreja da Penha, o Plano Inclinado e a Arena Cultural Dicró, para enriquecer seus mapas.
Na quinta aula, organizamos uma visita aos locais históricos e culturais da Penha, como Parque Ary Barroso, Arena Cultural Dicró, Avenida Brás de Pina, Largo da Penha, estátua do Mestre Touro, Parque Shangai, Plano Inclinado da Penha e Igreja da Penha, com um guia local, morador da região, credenciado pelo Ministério do Turismo. Durante a visita, os alunos coletaram informações, tiraram fotos e fizeram anotações para enriquecer seus mapas. Na aula seguinte, promovemos uma discussão sobre as experiências da visita, onde os alunos compartilharam o que aprenderam e como a visita contribuiu para a construção de seus mapas.
Como apresentado, durante a primeira fase do projeto, os alunos exploraram a história e identidade negra na Penha. Discutimos a importância da identidade racial, introduzimos a cartografia social e criamos “mapas afetivos” com base em memórias pessoais. Estudamos a história local, desde os quilombos até o presente, e visitamos locais históricos do bairro, coletando dados e enriquecendo nossos mapas.
CONEXÕES ENTRE O QUILOMBO DA BRANT HORTA E A PEQUENA ÁFRICA CARIOCA: AS RAÍZES ANCESTRAIS E CONTEMPORÂNEAS QUE FORMAM A NOSSA IDENTIDADE
Na segunda fase, os alunos visitaram a Pequena África, área localizada na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro, explorando as raízes ancestrais da comunidade negra em locais como o Cais do Valongo e a Pedra do Sal. A partir da visita, os alunos construíram uma cartografia social desses locais, destacando sua importância e preservação.
No preparo da visita, explicamos a importância do território da Pequena África, organizamos e realizamos a excursão, onde os alunos coletaram muitas informações. De volta à sala de aula, apresentaram seus mapas e discutiram a representatividade negra. Conectamos o Quilombo da Penha com a Pequena África, explorando a participação negra contemporânea via pesquisas online e discussões. Os alunos investigaram figuras e iniciativas negras atuais, criando apresentações e debatendo suas contribuições.
Por fim, confrontamos questões difíceis sobre racismo ambiental e estrutural que persistem nas comunidades da Penha. Em rodas de conversa com organizações locais, examinamos como formas de discriminação impactam as oportunidades socioeconômicas e a qualidade de vida dentro de nossa comunidade. Referências como Milton Santos (1996) em “A Natureza do Espaço”, que explora as desigualdades socioeconômicas e espaciais que afetam comunidades marginalizadas, e Abdias do Nascimento (1980) em “O Genocídio do Negro Brasileiro”, que aborda o racismo estrutural e a resistência cultural das comunidades negras, forneceram uma base teórica sólida para essas discussões. Essas obras ajudaram a contextualizar e aprofundar a análise, oferecendo uma visão crítica sobre a organização desigual dos espaços urbanos e a perpetuação da discriminação através das políticas públicas, o que enriqueceu a compreensão dos alunos sobre as dinâmicas de racismo ambiental e estrutural.
Na aula sobre racismo ambiental, reforçamos a importância do tema explicando como ele afeta comunidades não-brancas, sobretudo negras e indígenas, destinando-lhes os prejuízos dos impactos ambientais, diante da falta de serviços públicos e políticas urbanas desfavoráveis. Representantes de organizações locais, como os amigos da zona da Leopoldina, CEM Serra da Misericórdia, Observatório de Favelas e o Parque Ary Barroso, compartilharam exemplos concretos de racismo ambiental na Penha, como a ausência de coleta regular de lixo e o saneamento inadequado em áreas predominantemente negras, e a maior vulnerabilidade a enchentes devido à falta de infraestrutura adequada. Esses exemplos encorajaram os alunos a participarem ativamente da discussão.
Em seguida, promovemos uma nova discussão sobre como essa desigualdade socioambiental afeta o acesso às oportunidades econômicas e sociais, incentivando os alunos a compartilharem suas próprias reflexões e experiências. Depois, abordamos o conceito de racismo estrutural, mostrando como ele influencia a elaboração de políticas públicas ambientais urbanas e perpetua desigualdades. A roda de conversa continuou com exemplos de como o racismo estrutural afeta as políticas públicas na cidade, como na distribuição desigual de recursos e serviços urbanos entre bairros ricos e pobres. Após essa discussão, incentivamos os alunos a refletirem sobre maneiras de combater o racismo ambiental e estrutural em suas comunidades.
Durante a discussão, surgiram várias proposições para combater o racismo ambiental e estrutural na Penha. Os alunos sugeriram a criação de um comitê comunitário para monitorar e exigir melhorias na infraestrutura urbana, como coleta de lixo e saneamento básico. Propostas para organizar campanhas de conscientização e educação ambiental nas escolas locais também foram apresentadas, visando informar a comunidade sobre seus direitos e maneiras de lutar por um ambiente mais justo e saudável. Além disso, a ideia de parcerias com ONGs e instituições acadêmicas para desenvolver projetos de pesquisa e intervenção social foi amplamente apoiada, para obter dados concretos e promover políticas públicas inclusivas.
AVALIAÇÃO E IMPACTO DO PROJETO: PROMOVENDO IDENTIDADES E REFLEXÕES CRÍTICAS
Os alunos foram avaliados com base na qualidade de suas apresentações, na participação nas discussões e nas reflexões sobre as conexões entre o passado e o presente em relação à presença e participação negra em nossa cidade. A qualidade de sua cartografia social, a participação na discussão pós-visita e as reflexões sobre a importância dos territórios ancestrais e da representatividade negra na história, também foram consideradas.
Além disso, a avaliação levou em conta a participação nas discussões; a qualidade de seus mapas afetivos e mapas da Penha; o conhecimento construído sobre a história do bairro e a reflexão sobre a visita ao território. Também foi observada a capacidade dos alunos de refletirem sobre o impacto do racismo ambiental e estrutural, além de maneiras de combater essa desigualdade.
A compreensão sobre a história e cultura afro-brasileira, a partir do bairro da Penha, foi destacada, incluindo a relevância dos quilombos e favelas. Avaliou-se a promoção da identidade racial e cultural, integrando a cultura maker e tecnologia digital mediante projetos que integraram ferramentas de design digital, produção de podcasts e videocasts, e o uso de aplicativos para mapeamento digital. A metodologia foi avaliada quanto à sua adequação ao contexto e participação ativa dos alunos. As práticas contribuíram para o desenvolvimento crítico e sensível desses, impactando positivamente a comunidade escolar.
Esses momentos interconectados destacaram como a história e identidade negra moldam nossa sociedade, enfatizando a preservação e valorização da identidade negra. Observou-se o fortalecimento do senso de pertencimento e autoestima dos alunos, promovendo um ambiente mais respeitoso e enriquecedor no ambiente escolar.

Virgínia de Oliveira do Espírito Santo
Educadora da Rede Pública de Ensino da Prefeitura do Rio de Janeiro desde 1985. Iniciou sua carreira como professora primária e, atualmente, leciona Geografia para o Ensino Fundamental II na E/CRE(04.11.010) Escola Municipal Brant Horta. Formada em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), possui duas pós-graduações: uma em Educação Infantil e outra em Planejamento e Uso do Solo Urbano, ambas também pela UFRJ. Além de sua atuação na educação, também é planejadora urbana, o que complementa sua visão interdisciplinar e prática sobre o espaço e a sociedade. Ao longo de sua carreira, tem se destacado por seu compromisso com a educação de qualidade e com a inclusão. Em 2023, Virgínia foi laureada com o Prêmio Comdedine pelo melhor plano de aula antirracista da rede municipal do Rio de Janeiro ("Cartografia Social, Memória e Resgate da Identidade Negra na Penha - Do Quilombo da Penha à Construção do Enaltecimento do Território Ancestral da Penha"), demonstrando um contínuo empenho em promover uma educação equitativa e justa. Sua trajetória é marcada pela constante busca por melhorias no ensino e pela valorização da diversidade cultural e social em sala de aula
REFERÊNCIAS
FINATTO, Roberto Antônio; FARIAS, Maria Isabel. A Cartografia Social como recurso metodológico para o ensino de Geografia. Geografia Ensino Pesquisa, Santa Maria, RJ, v. 25, e03, 2021.
NASCIMENTO, A. O Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1996.